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Veio lá de Portugal
sezer ozger | iStock
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A gastronomia portuguesa chegou junto com as primeiras naus e muito antes do compartilhamento da informação, os portugueses criaram um caldeirão cultural deliciosamente perceptível nas refeições até hoje

Quando a chef portuguesa Ilda Vinagre desembarcou no Brasil, em 2009, para assumir a cozinha do restaurante A Bela Sintra, em São Paulo, ela conheceu melhor os pratos emblemáticos daqui, se surpreendeu com a riqueza do vatapá e se apaixonou pelo sabor e pela textura da mandioquinha.

Tanto que, numa das viagens de visita à família, em Lisboa, levou alguns quilos do tubérculo na mala e outros tantos de carne-seca para preparar a mistura que conheceu em terras brasileiras. “Sucesso absoluto!”, conta ela no livro Saudade Tem Gosto (Melhoramentos), em que narra suas (des)aventuras pelo mundo da cozinha na Holanda, nos Estados Unidos, na China, em seu Portugal natal e, por último, no Brasil, onde vive e ainda diz se encantar diariamente com as frutas: jaca, cupuaçu, jabuticaba.

“O maracujá, muito diferente do que existe na Europa, talvez seja a minha favorita: sua versatilidade permite que esteja presente na doçaria, nos sucos e até mesmo nos molhos que tão bem acompanham os peixes, como a pescada”, diz.

Bagagem e gastronomia portuguesa

Intervenções nas pinturas de Ernesto Casanova/Wikimidia Commons/Public Domain; ilustrações iStock e Shutterstock

Levou algum tempo para Ilda se adaptar ao país, longe de sua terra e da família – as filhas, já casadas, permaneceram em Portugal. Para matar a saudade, conta com as receitas que remetem ao passado em Marinhais, freguesia portuguesa quase à beira do Tejo de pouco mais de 6 mil habitantes, e que trouxe na bagagem – algumas acabaram inclusive por entrar no cardápio do restaurante aqui, como o bacalhau Fernando Pessoa, em homenagem ao poeta português, que leva o peixe em lascas, batatas bolinha, tomate-cereja e brócolis.

Mas a verdade é que Ilda não precisa ir tão longe – nem mesmo nas memórias – para encontrar acolhimento no gosto de suas saudades. Os saberes da gastronomia portuguesa estão tão cá, no país que ela recentemente adotou como casa, quanto lá, aquele que quis o destino que ela nascesse. É difícil separar os preparos da cozinha regional brasileira da portuguesa, saber onde começa um e termina outro. As influências de seus antepassados, que aqui desembarcaram nos idos de 1500, se mantiveram presentes na mesa brasileira.

Desde que nossos colonizadores atravessaram o oceano e se estabeleceram por aqui, da convivência (nem sempre harmônica) com os índios até a vinda da família real para o Rio de Janeiro, modos de preparo e técnicas de cozimento portugueses passaram a fazer parte do nosso dia a dia nas refeições. A culinária lusitana, caracterizada por sua rusticidade e ruralidade (sem que isso signifique falta de sofisticação, ora pois) é vista – e degustada – em diversas preparações que foram incorporadas em um receituário reconhecido como brasileiro, por assim dizer. E está presente em muitos dos pratos que jamais poderíamos supor.

Adaptação e influência

A empreitada portuguesa no Brasil exigiu muita inventividade e senso de oportunidade, como se vê em empreendimentos como os engenhos de açúcar e no uso de algumas tecnologias que foram aprendidas com os indígenas e com os negros. E também na busca por ingredientes. Muitas técnicas portuguesas de preparo de alimentos esbarravam na falta dos ingredientes encontrados apenas na Europa.

Com o tempo, eles foram sendo substituídos. A mandioca era usada, por exemplo, no lugar do amido de batata; o jiló, no da berinjela; as laranjas, do limão; e os pinhões, das castanhas. “Aprender com os saberes indígenas foi essencial para a sobrevivência nos sertões brasileiros, como é o caso do uso do tipiti (um tipo de espremedor indígena feito de palha trançada) para extrair o suco da mandioca brava e dele conseguir o tucupi e o polvilho”, afirma Sandro Dias, professor do curso de tecnologia em gastronomia do Centro Universitário Senac em Águas de São Pedro (SP).

Até mesmo nossos primeiros registros históricos e bibliográficos trataram de esquadrinhar receitas para jantares da época, pelo menos em uma atmosfera doméstica, mostrando que a base das receitas brasileiras era, na verdade, uma adaptação do receituário de Portugal.

Primeiros livros culinários

O Cozinheiro Imperial foi o primeiro livro culinário editado no Brasil, em 1840. A obra O Cozinheiro Nacional surgiu depois, entre 1874 e 1888, não se sabe ao certo, já que até sua autoria é desconhecida. Essas obras foram inspiradas nos manuais culinários de Portugal, estabelecendo de vez (e de forma registrada) essa influência, à medida que propunham receitas portuguesas que se esperavam poder adaptar no Brasil, só que com ingredientes encontrados aqui.

No século 19, por exemplo, o uso dos feijões, muito provavelmente longe das senzalas, fez nascer em restaurantes do Rio de Janeiro a receita da feijoada. O prato tem como ancestrais conceituais o cassoulet francês, a paella espanhola e, especialmente, os cozidos portugueses – além da sua própria versão à portuguesa, feita com feijão-branco ou manteiga, cenoura e, claro, muitos embutidos de porco.

Outros pratos compõem esse “ideário”, como os vários cozidos de feijões, o próprio cozido à portuguesa (um clássico daquelas paragens) e até uma feijoada de mariscos, entre outras expressões de várias colônias portuguesas, como a feijoada moçambicana, a feijoada à timorense, a feijoada de Goa e sua versão cabo-verdiana conhecida como cachupa, que traz na composição um ingrediente inusitado: o milho.

Globalização e gastronomia portuguesa

Intervenções nas pinturas de Ernesto Casanova/Wikimidia Commons/Public Domain; ilustrações iStock e Shutterstock

“E o que dizer dos vários tipos de cuscuz que se disseminaram pelo interior do país? De origem africana, por mãos mouras, o cuscuz foi levado a Portugal e, tempos depois, também chegou ao Brasil. Por aqui, ganhou inclusive versões doces, como é o caso da nordestina, feita com mandioca, milho, coco e açúcar, muito distinta do salgado cuscuz à paulista, por exemplo”, explica Sandro Dias.

Se as grandes navegações mexeram no cardápio da humanidade, gerando uma globalização gastronômica, na relação entre colonos-colonizados isso ficou ainda mais claro, como no caso dos portugueses e suas colônias. Desde o século 15, Portugal se impôs como o primeiro país europeu a estabelecer bases no continente africano, primeiro no Marrocos, depois no arquipélago que viria a ser Cabo Verde, e mais à frente na África do Sul.

Já às portas do século 16, Vasco da Gama contornaria o Cabo da Boa Esperança e de lá iria à Índia. As descobertas em terras tão distantes também chegaram ao Brasil e isso ampliou, por aqui, a presença de países asiáticos como a China e o Japão, onde a palavra portuguesa “tempero” deu origem ao termo tempurá. “Uma clara influência dos portugueses”, garante Sandro Dias.

Expansão ultramarina lusitana

Segundo o professor, a própria consolidação de Portugal como potência marítima, mercantil e colonialista no século 16 só foi possível no momento em que eles conseguiram enfrentar a questão da sobrevivência, por meio da adaptação dos fazeres culinários europeus aos alimentos que puderam encontrar (ou mesmo produzir) nas localidades colonizadas.

“O registro dos cronistas portugueses da época a respeito disso parece ser uma estratégia deliberada do estado português para se certificar de que tipo de alimento poderia contar para o plano de colonização. É quase como a Nasa pesquisar se há água em Marte, se tivermos em mente as dificuldades e todo o aparato tecnológico necessário às expedições desse gênero naquela época para se aventurar em suas ‘naves’”, descreve ele.

As “naves” portuguesas também trataram de estabelecer uma influência mútua entre suas colônias, criando um grande panelão lusófono. Um dos exemplos mais emblemáticos está no milho, que fora cultivado e melhorado pelas comunidades indígenas, mesmo antes da chegada dos europeus, e que fora levado, pelos portugueses à Europa e também à África.

Sincretismos com a gastronomia portuguesa

Outro produto, que provavelmente se originou na Ásia mas que teve nos portugueses seu principal agente de disseminação, foi o arroz. O quiabo, trazido pelos escravos por ocasião da escravidão promovida por portugueses, se tornou um produto essencial para comidas de santo de religiões afro-brasileiras, especialmente na Bahia. E, para ficar na mesma região, os traços de Angola na culinária brasileira, pelas mãos dos escravos, tiveram influência das colônias portuguesas, como é o caso do caruru e do vatapá e o uso da pimenta-malagueta (ou piripiri, como vão preferir os portugueses e outros do domínio lusófono).

“Talvez os menos atentos não se deem conta de que a influência portuguesa começa pelos produtos – muitos dos que hoje são assumidamente brasileiros foram trazidos de outras paragens pelos portugueses”, explica o chef português Vitor Sobral, que tem sua trajetória constituída na cultura e gastronomia portuguesa, com seis casas em países como Portugal, Angola e também Brasil, onde está em São Paulo e João Pessoa – neste último, aliás, ele se disse impressionado por encontrar uma versão do estufado de borrego, um tipo de guisado muito comum em Portugal, mas no Nordeste feito com carneiro e mandioca, em vez da tradicional batata.

“Os portugueses adaptaram as suas receitas aos produtos disponíveis, que podiam variar em função da classe social a que pertenciam. Uma característica que ainda hoje é fácil de entender na cozinha regional portuguesa é a sua engenhosidade quando há fartura de alimentos ou quando estes são menos abundantes. Por questões financeiras ou sazonais, essa filosofia foi transportada para as colônias”, ele diz.

Difusão Cultural

Intervenções nas pinturas de Ernesto Casanova/Wikimidia Commons/Public Domain; ilustrações iStock e Shutterstock

Em uma viagem recente a Chicago (EUA), fui parar em um restaurante especializado em comida macaense. O Fat Rice faz uma comida típica do Macau, país também colonizado por portugueses. Misturada aos temperos e sabores asiáticos, a gastronomia portuguesa presente ali ganhou características únicas, uma mistura sem precedentes.

Um dos exemplos é o arroz gordo que dá nome ao restaurante: mistura camarões, galinha, salpicão (uma linguiça portuguesa), ovos e pato com arroz, reunindo ingredientes da vizinha China com outros trazidos de Portugal, e técnicas combinadas das duas culturas. Uma miscelânea realmente surpreendente.

Portugal é o país mais antigo da Europa com fronteiras definidas. Ao longo de sua história, teve várias culturas que o influenciaram, como os celtas e os visigodos, no início de sua formação como país. Mais tarde vieram os romanos e os mouros, os descobrimentos e toda a sua influência. “Portugal é o resultado dessa mistura, que criou a sua própria matriz, onde os produtores e a cozinha regional se mantêm fiéis até os dias de hoje”, afirma Vitor.

Dessa miscelânea, o país saiu aos mares para difundir sua cultura e acabou, assim, criando novas combinações e possibilidades de saberes e de sabores, que ajudaram a recontar a história gastronômica dos países que colonizou. “Hoje, em tempos de globalização, fala-se muito da comida de fusão, de influências incontáveis entre culturas gastronômicas diferentes. Algo que os portugueses começaram há pelo menos cinco séculos.”

Rafael Tonon é jornalista especializado em gastronomia e não nega suas diversas raízes: mineiras, italianas e, claro, portuguesas.

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