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O que aprendi com minha filha Down
Chinnapong | iStock
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O diretor de audiovisual carioca Duda Vaisman nunca tinha percebido quantas pessoas com a síndrome caminham todos os dias pelas ruas. Para ele, a filha com Down o ensinou a respeitar e a entender as diferenças

Quando a Marina nasceu, ainda na sala de parto, olhei para a carinha dela e pensei: ela é Down. Eu não precisava de um exame que atestasse isso, eu simplesmente sabia. E, para minha surpresa, eu lidei com isso com naturalidade. Marina nasceu após uma gravidez difícil. Era nossa segunda experiência como pais. Eu e a Ana, minha esposa, estamos juntos há 18 anos.

Primeiro, tivemos o Matias, hoje com 15 anos. Quando Ana engravidou novamente – Marina está com 10 anos –, começaram as complicações. Ela desenvolveu um problema chamado síndrome antifosfolipídica, na qual o organismo produz microtrombos. Isso gera, entre outras coisas, problemas no fígado e cansaço. Ana também fez os exames do pré-natal e nenhum apontou que o bebê fosse Down, inclusive o da translucência nucal, o mais certeiro nesses casos.

Depois de quase nove meses de muitos cuidados com a saúde da minha esposa, a Marina nasceu. O ambiente da sala de parto era bem familiar. O obstetra é um amigo nosso. E meu pai, que é pediatra, também estava lá, junto com mais dois outros amigos pediatras. Estávamos bem amparados. No momento que retiraram a Marina, percebi que havia algo estranho. Vi meu pai assustado e os outros médicos ao redor do bebê.

Complicações no nascimento

Foi tudo muito rápido e logo a colocaram na incubadora. Me aproximei, olhei para a minha filha e falei para o pediatra que ela era diferente. “Diferente como?”, ele indagou. Falei de maneira firme que ela era Down. Ele me disse que não era possível afirmar isso. A Marina havia nascido em condições difíceis. Era preciso esperar um pouco. Mas, de qualquer forma, ela seria avaliada por uma geneticista. Só que para mim não restavam dúvidas. Algumas horas depois, quando a Ana acordou da anestesia, disse para ela: “Nossa filha é Down”. E ela também lidou com isso numa boa.

A gente nunca sabe como vai reagir quando descobre algo assim. Mas nem eu nem a Ana ficamos desesperados. No dia seguinte, a geneticista confirmou: Marina era uma garotinha Down – não há casos da síndrome nas nossas famílias. Nos dias que se seguiram, descobrimos que ela tinha um problema cardíaco, comum em quem tem Down e que poderia ser resolvido com uma cirurgia.

Foi diagnosticada também uma descompensação metabólica grave, que não tem nada a ver com a síndrome. O organismo dela não estabilizava e ela não tinha força para sugar. Também não usava as reservas de nutrientes do organismo e por isso consumia o que havia nos músculos. Por conta disso, ela não poderia ser alimentada normalmente e começamos a importar uma fórmula (de nutrientes) produzida nos Estados Unidos e feita especificamente para quem tem esse problema. Ela também teve que colocar um tubo com conexão direta ao estômago, por onde essa alimentação era introduzida. Esse problema, sério, fez com que nossa bebê ficasse os três primeiros meses na UTI.

Luta pela vida

Depois disso, ela veio para casa tomando muitas medicações. Pouco tempo se passou e Marina precisou voltar ao hospital por conta de uma bacteremia (quando bactérias entram na corrente sanguínea). Seu estado era grave e ela foi mantida em coma induzido por dois meses.

Um dia, a médica que cuidava dela nos chamou e disse que gostaria de fazer uma cirurgia, mesmo que arriscada, para ver se a Marina melhorava. O que não dava era mantê-la naquela condição. Topamos. E, depois disso, nossa pequena reagiu. Com tudo isso, ela passou boa parte do primeiro ano de vida internada – nesse período fez a operação no coração. Alguns meses após a alta, recebemos, ainda, o resultado de um exame, feito fora do Brasil, atestanto que a Marina não tinha uma doença metabólica. Acreditamos que os problemas que enfrentou após o nascimento tiveram a ver com uma desordem transitória. Foi incrível receber essa notícia.

Vida normal

Apenas aos 3 anos, Marina começou a ter uma vida normal. Hoje, ela frequenta a mesma escola que o irmão. Está no quarto ano. Foi a primeira criança Down do lugar e atualmente tem uma mediadora, a Jessica, que ajuda no dia a dia escolar adaptando os materiais. Ela faz natação, capoeira e equitação. Como adora animais, a avó a presenteou com a atividade junto aos cavalos.

A relação com o irmão é ótima. Eles se amam demais. É a coisa mais incrível do mundo. Ele faz tudo por ela. É um amor recíproco. Neste momento, Matias está viajando com os avós. Ele liga para falar com ela – não é para falar comigo, nem com a Ana. Matias tem muito orgulho da irmã e lida com o fato de ela ser Down com tranquilidade. Em casa, a gente sempre falou abertamente sobre a síndrome. Nunca escondemos nada nem dele nem de ninguém.

A gente sempre leu muito sobre o problema também. Mas tem um momento em que o melhor é parar de buscar tantas informações e pesquisas. Muitas delas só trazem dados negativos, e isso começa a sufocar: “Quem tem Down vai ter isso e aquilo, vai viver pouco…”. Algo bacana que fizemos foi nos aproximarmos de outros pais que têm filhos Down com a mesma idade da Marina. Nos unimos ao grupo RJDown. Trocamos informações, histórias. As pessoas que fazem parte desse grupo costumam se reunir esporadicamente. E, nesses encontros, tentamos levar algum especialista interessante para conversar, tirar dúvidas e enriquecer as trocas.

Convívio com a diferença

Ter uma filha Down é um aprendizado diário. Percebi que não posso exigir que os outros tenham o mesmo entendimento do problema e a mesma visão do mundo que eu tenho – porque, certamente, meu olhar e minha relação com as pessoas quem têm a síndrome mudaram depois de ser pai da Marina. E isso é também saber lidar com a diferença.

Lembro-me de um amigo que, logo depois que ela nasceu, me disse: “Amanhã, você vai sair e perceber quantas pessoas Down existem caminhando na rua e você não enxergava”. E foi o que aconteceu. A gente simplesmente não percebe. O desafio de quem tem um filho Down é fazer com que o convívio com o diferente seja mais igualitário. Minha convivência com a Marina tem me mostrado que o mundo é mais interessante, rico e emocionante com as diferenças. É claro que a prática é difícil. A vida da Marina não é cor-de-rosa. Ela tem uma deficiência, e isso não é um demérito. Ela pode, apesar disso, ter um futuro brilhante.

Aprendizado

Aprendi com minha filha a relativizar os problemas. Passei muito tempo na UTI com ela e vi muita coisa. É uma experiência marcante e que me mostrou como a vida é preciosa. Quando ela estava com a vida por um fio, eu repetia: “Queria que você melhorasse”. Um dia, me deu um estalo e pensei: “Se ela estiver cansada de lutar, tem o direito de desistir”.

A gente só pensa no próprio sofrimento e esquece que nosso querer nem sempre é o melhor para o outro. E, quando ela superou os piores prognósticos e ficou bem, eu pensava: “O que ela vai ser capaz de fazer?”. Bom, na semana passada, Marina foi para um acampamento sozinha – o mesmo que o irmão já foi inúmeras vezes. Ela conviveu por alguns dias com 90 crianças desconhecidas. E foi para o passeio feliz, com a mala pronta e um sorriso no rosto.

Então eu concluí: não existem limites para a Marina. Ela só vai descobrir até onde pode chegar experimentando. E não sou eu quem vai dizer até onde ela pode ou não ir. Talvez ela não escreva com a melhor letra do mundo. Talvez não leia com a melhor fluência. Mas ela tem outras habilidades. Então tudo bem.

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