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A arte de respirar sem ajuda de aparelhos
shironosov | iStock
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Desconectado: como olhar para os lados e perceber o que acontece ao redor, perder o excesso de foco e abrir mão de amparos eletrônicos pode alimentar a nossa imaginação e ajudar-nos a ter uma vida mais criativa, bela e original

Reparar é uma das coisas que mais gosto de fazer na vida. Não para consertar algo. Tenho queda mesmo é para o desconserto. Por isso, reparo em tudo, quase o tempo todo. Sou escritor, vivo dos meus reparos. Mas não reparo porque escrevo. Só escrevo porque reparo. Escrever, para mim, é a consequência de um estado permanente de reparo amoroso diante do que me rodeia e do que mora nas entrelinhas das palavras, dos silêncios, das pessoas, das banalidades do cotidiano.

Então, quando chego à casa de alguém e a pessoa me pede que eu entre, mas não repare, peço desculpas e respondo que não posso fazer nada. Afinal, sem reparos, não sinto, não escrevo, não respiro. E o que tenho visto é o quanto tantas pessoas, agarradas em celulares, computadores e fones de ouvido, só estão respirando com a ajuda de aparelhos.

Foi o que constatei, quando um dia estava com o Gabriel, meu filho, na Caravelle, velha pizzaria que nos nutre a fantasia, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Ao nosso lado, nove pessoas comiam e conversavam. Entretanto, na realidade, reparamos que oito delas conversavam com gente que não estava lá.

De corpo presente

Sim, oito pessoas escreviam ou falavam pelo telefone, e só uma moça, naquela mesa, não usava celular. Sem falar com ninguém, ela olhava em volta, fazia e desfazia o seu coque, comia sua pizza e desenhava num guardanapo. De repente, sem me dizer nada, meu filho foi até a mulher, se apresentou, disse que também estava sem grupo de conversação e perguntou se poderia puxar uma cadeira para conversar um pouco. Ela topou, rindo.

Fiquei olhando a cena com perplexidade. Eles conversaram durante uns quinze minutos. Depois, a moça veio com o Gabriel até mim. E o que mais nos espantou foi que ele chegou e foi embora sem que nenhuma das pessoas da mesa reparasse em nada do que aconteceu. O Gabriel chegou e saiu, sem que elas desgrudassem o olho e o ouvido do telefone. Quer dizer, podem até ter desgrudado um pouco, mas a alma delas não estava lá.

Desconectado

Para tentar explicar extravios da alma, gurus modernos dizem que devemos manter o foco em nosso dia a dia. Sempre acho que essa história de manter o foco é desejo de foca interessada. É claro que muitas vezes precisamos nos concentrar no que estamos fazendo, pensando, vivendo.

Entretanto, quem só foca, na realidade, se sufoca, e acaba sufocando os outros, sem reparar em nada do que existe ao redor. As pessoas na pizzaria estavam tão focadas nas suas conversas telefônicas que não olharam para os lados de verdade, nem por um instante. Minha mãe sempre me ensinou a olhar para tudo com susto, estranheza e taquicardia, e o meu pai até hoje me diz: “olha para os lados, quando atravessar a rua.”

Aos cinquenta anos, ainda olho com susto, estranheza e taquicardia para as belezas disfarçadas no dia a dia, e olho para os lados. Não só quando atravesso as ruas, mas também quando percorro por algum ângulo novo uma paisagem que já vi quatrocentas vezes, ou o rosto de uma mulher que desenha em guardanapos. Se não olho para os lados, eu me atropelo.

Mundo visto por telas

ilustração tiago gouvêa • @tgouvea

No entanto, há uns anos, quase me atropelei quando olhei para o lado e vi uma cena que ainda boia na minha cabeça feito plástico no oceano. Naquela noite, fui à maternidade com um amigo ver a chegada da filha de um irmão. Antes disso, dentro do berçário, um rapaz segurava seu recém-nascido, com pose de pai exibido. A família e os amigos estouravam champanhe, abraçavam-se, davam a boa notícia a outros, pelo telefone.

Quando a enfermeira deixou o bebê no berço mais próximo do vidro, as pessoas ficaram ainda mais entusiasmadas. Mas o momento foi interrompido por um grito com timbre de emergência. “Gente, gente, corre, o João Pedro está aqui!”, berrava uma mulher. Na sala de espera da maternidade, havia um telão onde os recém-nascidos apareciam, numa imagem feita logo que chegavam ao berçário. “O João Pedro está aqui!”, a mulher repetia.

E, quando vi, não havia mais ninguém em frente ao berço do menino. Todos correram para ver o João Pedro no telão. Sim, as pessoas correram para ver o bebê virtual e deixaram o bebê real só comigo e o meu amigo André Pimenta. Então, eu disse ao João Pedro: “Rapaz, seja bem-vindo. Não é pessoal. Mas aqui nesse mundo, se não está na mídia, você não existe”, expliquei a ele.

Em seguida, pedi ao Pimenta que conversasse um pouco com o João Pedro. Eu voltaria logo. Antes, precisava ver o que estava acontecendo na sala de espera. Corri para lá, e bem em frente à tela onde o João aparecia, as pessoas estouravam champanhe, abraçavam-se, davam a boa notícia a outros, pelo telefone. Tudo igual, com uma diferença. Perto de mim, um homem filmava a tela. Tentei achar quem filmava o homem, mas não vi ninguém.

Descontrole de pessoas controladas pela tecnologia

Para falar sobre o descontrole de pessoas cada vez mais controladas pela tecnologia, dei uma entrevista à jornalista Leila Ferreira para o maravilhoso livro A Arte de ser Leve (Planeta). Nessa entrevista, contei à Leila que certa vez, na fresta de uma tarde, abri a caixa-postal do meu computador e encontrei três mensagens de um mesmo autor.

Num primeiro e-mail, enviado às seis da manhã, ele se apresentava, dizia que gostaria de me contratar para avaliar um livro que havia escrito, e pedia detalhes sobre o trabalho de consultoria literária que presto para escritores. Depois, vi também que já havia um segundo e-mail, enviado ao meio-dia, em que me perguntava se eu havia recebido a mensagem anterior.

Por fim, abri o e-mail que ele me mandou às cinco da tarde, terminando o nosso relacionamento. Nessa mensagem final, o sujeito me dizia assim: “Vejo que não respondeu aos meus e-mails, provavelmente por não apostar no meu trabalho. Ok. Imagino que você deva ter coisas mais importantes para fazer e não dispõe de um tempo mínimo para gastar com autores ainda desconhecidos do público. Mesmo assim, desejo-lhe sucesso com os seus afazeres exclusivos para gente famosa e importante. Boa sorte e adeus. Peço que não se dê o trabalho de me responder”. Realmente não me dei o trabalho de responder.

A tecnologia existe para aproximar as pessoas. Mas, em geral, as pessoas a usam de um modo que as afasta umas das outras e as impede de ver o mundo sem tantos vidros, telas e outros intermediários.

Falar sobre o tempo

Quem eu vi outro dia foi uma mulher cheia de sacolas de supermercado. Cega, ela atravessava uma galeria sem que ninguém a ajudasse. As pessoas passavam por perto. Muitas delas falavam ao telefone, ou escreviam nele, de cabeça baixa, mergulhadas nas suas focagens. Ofereci ajuda, para levar as sacolas e guiá-la pela calçada. Depois, perguntei o seu nome. “Bianca”, ela me respondeu e me pediu com um sorriso: “Obrigada pela delicadeza, só tome cuidado com essa sacola, por favor, porque ela tem uma coisa de virar dentro”.

E eu disse à Bianca: “Por que você fez isso comigo? Agora preciso ver que coisa é essa de virar dentro que você leva na sacola”. Ela me disse, de riso segurado, que nem pensasse nessa possibilidade. Retruquei brincando que poderia olhar sem que ela soubesse. Dessa vez, com um sorriso de corpo inteiro, a Bianca me assegurou que perceberia, caso eu mexesse na bolsa para ver o que havia nela. Resignado, resolvi falar sobre o tempo.

Nada como falar sobre o tempo, quando precisamos mudar de assunto. Acabei falando para a Bianca da minha paixão por chuvas e a Bianca me falou do seu amor por água fria em dia quente. Em seguida, de prosa mudada, atravessamos a rua. Ela me pediu para ficar numa loja de lingeries finos. Depois, nos despedimos, olhei a Bianca entrar na loja, e fiquei até hoje com umas coisas de virar dentro na minha cabeça.

O poder da imaginação de um desconectado

ilustração tiago gouvêa • @tgouvea

A verdade é que só imagino o que não sei. Se soubesse o que virava dentro da sacola da Bianca ou o que ela mais levou em conta na hora de escolher uma peça na loja de lingeries, não imaginaria tanto. Mas, afinal, qual a importância da imaginação na vida da gente?

No seu livro Caderno H, o poeta Mario Quintana escreveu: “as pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas… Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta ser vivida: também precisa ser sonhada”. É o que acontece. A imaginação nos reaproxima da nossa essência mais reveladora, legítima, autêntica, original.

Penso nisso quando me lembro de mais uma cena num restaurante. Na mesa à minha frente, o pai perguntou ao filho: “O que você quer almoçar?” O menino, que estava escrevendo no celular, deixou o aparelho de lado e respondeu: “Eu quero um cheeseburguer duplo, com bacon, batata-frita e uma coca-cola gelada”. Sem tirar o olho do cardápio, com voz de brabeza ensaiada, o homem disse ao garoto: “Você ficou maluco? Nada disso é saudável. Acha que eu vou deixar você almoçar isso?”.

Sem tirar o olho do homem, o filho esclareceu: “Pai, quem vai decidir o que eu vou comer é você. Mas você me perguntou o que eu quero e eu respondi, só isso.” Tive vontade de abraçar o guri. Quanta clareza ao abrir sua verdade íntima… Quanta intimidade com os próprios desejos…

Brecha perdida

Que bela oportunidade para conversar sobre a coragem de assumir escolhas, sobre o prazer do descontrole, sobre a serventia das transgressões. Que brecha tentadora para eles se aproximarem um do outro. Sim, a brecha estava ali, fácil, doida para ser usada por aquele homem. Mas o homem, que falava alto e era mais de urgências do que de importâncias, atendeu ao telefone e começou a conversar sobre uns entendimentos inadiáveis com um sujeito que falava ainda mais alto do que ele.

E não tocou mais no assunto com o menino, não deu uma palavra sequer sobre nada. Só interrompeu a ligação para pedir ao garçom um salmão com salada para dois, um chope e um suco de laranja. O menino também voltou para o celular, talvez para conversar com alguém sobre uns entendimentos, quem sabe? E a brecha ficou olhando para mim, aquela volúvel.

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