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“Tem como me ajudar a ligar a máquina?”, um conto de Didier Ferreira
Xavier L. | Unsplash
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Hoje, sexta-feira, tenho tempo para arrumar a casa. Finalmente. Há quinze dias que a sujidade se vem acumulando. Em qualquer metro quadrado que pise, sinto o incómodo sob as plantas dos pés. Grãos de areia.  Migalhas de comida. Fios de cabelo. Pó. Toda a imundície pousada no soalho acompanha-me os movimentos em cada pegada que dou. E como me incomoda sobremaneira um lugar não higienizado, venho mentalizando profundamente “amanhã, amanhã tratarei da limpeza, sem falta!”

Mas o amanhã sempre se figurou igual ao dia anterior. Ao longo de praticamente um mês. Vinte e sete dias negligenciando os grãos de arroz que entornei sem querer sobre a bancada da cozinha e, preguiçoso, arrastei até ao rodapé do móvel. Dezanove dias sem higienizar a casa de banho, sem passar um pano no vidro, sem tratar da roupa acumulando. Dez dias a ter de lavar a loiça necessária para a sujar imediatamente, porque pratos, talheres, copos e panelas, tudo sujo, a acumular no lava-loiça, na bancada. Três dias a usar os mesmos boxers.

O meu pai era assim

Ai se o meu pai me visse no estado em que cheguei. Repreender-me-ia com toda a sua severidade e obsessão pelo rigor. Também nas limpezas. Desde miúdo. Ensinou-nos ele mesmo a fazer a cama de manhã, arrumar imediatamente as roupas que despíamos nas gavetas exatas, dobradas. Cedo, pôs-nos a varrer o chão, primeiro o dos nossos quartos, depois, do resto da casa.

Dizia repetidamente que quem sabe sujar também deve saber limpar, sem justificações.

A minha mãe não gostava nada dos preciosismos do meu pai. Queria ser ela a deter a exclusividade dos cuidados do lar, do marido, dos filhos. Para além de trabalhar fora de casa quase tantas horas quanto ele. Mas o meu pai teimava, contra. Que as responsabilidades fossem repartidas sempre que possível, afirmava. Por isso eu cozinhei quase tantas vezes como ele quando, nos meus quinze anos de idade, já os meus pais separados, dormia em casa dele. Sob a sua supervisão e orientação, fiz inúmeras vezes o arroz ou descasquei e cozi as batatas para ambos. A ele cabia a carne ou o peixe. Até que fiz dezassete anos e o meu pai ensinou-me a escamar e tratar o peixe. Detestei. Mas aprendi.

Sexta-feira, 13

É sexta-feira. Curiosamente treze. Oiço a efeméride assinalada no noticiário.

Hoje é sexta-feira treze, sabia? Sim, sim, sabia. E tem receio que lhe aconteça algum azar durante o dia? Não, isso não me assusta nada; a mim, o que me assusta mesmo é o preço deste combustível, isso sim é que é azar, já viu como está caro?

Escuto e sorrio. Escuto dividido entre a graça da entrevistada e a satisfação de estar pisando o chão limpo da minha casa, finalmente sem cabelos se arrastando às custas dos meus pés desnudos, enlaçados nos dedos, entrando às escondidas nas meias. Aspirei todo o espaço interior. Lavei a casa de banho, o lavatório, o espelho, as paredes, o duche, a sanita. Cuidei da loiça na cozinha, desinfetei o fogão, os móveis. Arrumei o quarto. No fim, passei a esfregona em todo o chão de todas as divisões. Até aqui, no hall de entrada.

Já do lado fora, a trouxa de roupa suja e a embalagem de detergente aguardam para que eu finalize com a esfregona o último metro quadrado em falta. Agora sim, pego na trouxa e no detergente para a máquina de lavar e sigo pelas escadas em direção ao rés do chão. Entro na lavandaria. Ninguém. Uma máquina de secar faz o seu ruído natural. Não me incomoda grande coisa. Pouso o detergente sobre a bancada, a trouxa sobre uma cadeira que arrasto para junto da máquina número cinco. Ponho-me de cócoras. Vou desdobrando a roupa à medida que a coloco no tambor. Ocorre-me que durante três dias usei o mesmo boxer. Recrimino-me, abanando a cabeça para os lados enquanto verto

— bom dia,

cuidadosamente

— bom dia,

o detergente. Dou por encerrado os preparos. Confirmo a porta trancada. Estou na máquina automática de pagamentos. Insiro as moedas, atento ao homem diante da máquina número três, atrapalhado, como que perdido, certamente desenquadrado. Tenho-o visto frequentemente no ginásio, a treinar sozinho ou na companhia da namorada. São ambos muito bem parecidos. Elegantes. Nos seus trinta anos de idade, embora ela deva ser um pouco mais nova do que ele.

Um homem em aflição

Estamos somente os dois dentro da lavandaria. Ele chegou com dois sacos de roupa e várias embalagens de detergentes e, parece-me, amaciadores. Vi como pousou tudo no chão, junto de uma máquina desocupada, e olhou para ela em busca de instruções. Como abriu a tampa, após duas hesitações. Como tirou, alternadamente, algumas peças de roupa de um e de outro saco, misturando assim as brancas e as de cor. E ouvi quando se dirigiu a mim, também em português, mas com sotaque estrangeiro,

— e aí, cara, sabe me dizer onde é que se põe o detergente?,

após ter depositado uma pastilha no tambor, juntamente com as roupas. Apeteceu-me dizer-lhe vais estragar as roupas brancas, tal como o meu pai me alertaria há década e meia  atrás. Contudo, os tempos mudam e as gentes são outras. Limito-te apenas a responder

— aqui, e aqui é o amaciador,

surpreso com a sua incapacidade e com um súbito preconceito que desconhecia haver em mim. Olhei furtivamente para os bíceps enormes do meu vizinho e achei lamentável tamanha inépcia para cuidar da roupa, como se o tamanho do braço dificultasse a qualidade do trabalho doméstico. Sinto-me envergonhado com o meu pensamento. Ele não. Pergunta-me, tranquilo e sorridente,

— tem como me ajudar a ligar a máquina?,

ao que respondo, quase como provocação,

— já vejo que não andas a lavar a roupa,

e ele retoma, da mesma forma, sorrindo,

— essas coisas são pra mulher, não acha?

Saio da lavandaria, triste.

Continue com Didier: “Alguém para estar comigo de verdade”


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

sujidade: sujeira

sobremaneira: excessivamente

dezanove: dezenove

casa de banho: banheiro

loiça: louça

lava-loiça: lava-louça

boxers: cuecas

miúdo: garoto

dezassete: dezessete

oiço: ouço

duche: chuveiro

sanita: privada

esfregona: esfregão

rés do chão: andar térreo

desenquadrado: desajustado

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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