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Saia da frente que eu tenho pressa!
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A obsessão por aproveitar o tempo já é um traço da nossa personalidade e um atributo do  mundo em que vivemos… E já foi nominado: trata-se da cronopatia

Não é a felicidade, não é o amor, não é o propósito… Hoje a busca maior do ser humano é a produtividade e a eficiência. Valoriza-se tudo o que está associado a velocidade e o “aproveitar melhor o tempo”. A máxima norte-americana “tempo é dinheiro” saiu da esfera do trabalho e ganhou todas as outras dimensões humanas. Uma ambição natural, afinal não somos eternos, valorizamos o nosso tempo, ele é precioso e não queremos desperdiçá-lo. Mas o que se vê é a degeneração dessa prática com a falta de medida e do exagero que trazem o estresse e a ansiedade.

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Mas porque essa obsessão com o tempo? Afinal não é o bem mais democrático que existe —  todos têm as mesmas 24 horas? Porém, o lado democrático acaba aqui. A percepção do tempo é única, cada um tem a sua e é aqui que começam os problemas. É não é sem razão a dificuldade em lidar com o deus Cronos. O tempo é um enigma apaixonante. Na filosofia, Aristóteles dissecou o conceito e tentou explicar o que é o tempo e chegou numa aporia — uma condição muito comum na filosofia e também na vida. Simplificando (desculpem-me os puristas) pode ser traduzido como um “beco sem saída” e que até hoje nunca foi superado. Mas houve tentativas. Santo Agostinho consagrou o “enquanto você não me pergunta, eu sei exatamente o que é o tempo. Agora quando você me pergunta, eu já não sei mais”.

A doença do tempo

Antes dele, Epicuro propôs uma perspectiva do tempo condicionada a percepção individual. Corretíssimo. Afinal você já deve ter percebido que existem tempos que demoram a passar e que existem tempos que você lamenta que passem depressa demais.

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Mas foi Kant quem trouxe uma explicação mais digerível. Para ele, o tempo é um dos nossos conhecimentos “a priori”, já nascemos com o conceito do tempo interiorizado, está inscrito no nosso ADN. E aqui a constatação prática: a forma de lidar com o tempo é individual. Somos definidos pela forma como organizamos o tempo. Há pessoas que tratam o seu tempo com leveza e generosidade e tem tempo para tudo, para si e para dar os outros. E há aqueles que estão em corrida permanente e não têm tempo para nada e nem para ninguém. Estes últimos, acabam por caírem no vazio e adoecerem. São vítimas de uma nova síndrome, a cronopatia. Literalmente a doença do tempo.

Será que eu…

Vê-se em toda parte. Somos doutrinados de que a pressa e a velocidade produzem maiores e melhores resultados. A agenda é cheia, todas as horas são preenchidas com tarefas, não se consegue dizer não a nada, sempre se encaixa tudo. Houve uma desistência, telefona para outro e preenche a lacuna. Tudo o que se faz precisa estar devidamente planejado. A regra é preencher todas as horas, inclusive nas férias. A vida acaba por se transformar numa fuga pra frente. E as grandes experiências da vida? E a plenitude dos momentos de quietude e paz? Não existem, não há espaço na agenda

Você sabe descansar?

Numa entrevista recente, o filósofo Byung-Chul Han alerta que o verdadeiro descanso está em vias de extinção. Para ele, a doença do tempo vem porque a rapidez — que é uma virtude, — em excesso, transforma-se em pressa. Ora, a pressa é um vício e logo a seguir a ele vem a doença. Por que não notamos? Porque a modernidade trouxe um caos semântico, entre eles o de que a pressa é uma virtude, vista como normal, inclusive com uma conotação positiva. E não é. É uma anomalia, sinal que o tempo não está sendo bem gerido. A pressa, o imediato, o urgente, o “para ontem”, tornaram-se os protagonistas essenciais da vida. E, no mundo do capital, um indicador de sucesso.

Qual domingo?  

Nas salas de psiquiatria já está consagrado o “domingo negro”. Quem tem um domingo assim? Os cronopatas. Durante a semana têm as horas completamente preenchidas e cronometradas. Às sextas e sábados vários programas — onde alguns incluem, sobretudo, o álcool. Chega o domingo e eles caem no vazio. Há uma queda de energia — física e mental — e o desejo para que chegue a segunda-feira. São cavalos de corrida que não sabem descansar. Sentem ansiedade, sentimento de culpa, vazio e tristeza.

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Isso porque no nosso molde social, o ócio, a tranquilidade, o descanso são malvistos. Não fica bem dizer que estamos livres e desocupados. Mesmo depois da fatiga extrema, taquicardia, enxaqueca, ataque de ansiedade e — nos casos extremos — enfarte — o doente ainda justifica que foi o “o médico mandou descansar”

As nossas crianças

O mais grave é que essa cultura da pressa está formando as novas gerações e já há crianças com a doença do tempo. As gerações anteriores tinham tempo livre. Só com a escola e depois na vida universitária passavam a seguir uma agenda. Hoje, com a tecnologia, as crianças já nascem ocupadas. Deveria ser considerado negligência parental crianças terem um tablet como babá. Há bebês que têm iPads. Ora, um bebê começa a prestar atenção quando vê luz.

Então, com o desenvolvimento, ele aumenta a capacidade de percepção e passa também para a o movimento e o som. O desafio da educação é direcionar o foco de atenção para as coisas estáticas, não luminosas e sem som, como a comida, os objetos, a escrita, a leitura, os deveres. Aqui, desenvolve-se o córtex pré-frontal onde está a vontade e o autocontrole.

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Ora, se nessa altura da vida, a criança recebe um iPad, celular ou um tablete, há um retrocesso no desenvolvimento porque a criança retorna ao estímulo luz, movimento e som. Com a exposição excessiva as esses dispositivos, chegam os déficits de atenção e concentração, a ansiedade, a dificuldade em respirar; e passamos a ter crianças com ansiedade, correndo de um lado para outro, como um executivo viciado em trabalho. É por isso que hoje — o capitalismo é mestre em arrumar soluções para os problemas que ele mesmo cria — há cursos de meditação e centros de mindfullness também para crianças.

Enquanto há tempo

É preciso reaprender a usufruir do tempo sem sentimentos de culpa e sem a sensação de desperdício. E, sobretudo, é necessário fazer uma inversão fundamental: não são as tarefas que comandam as pessoas, são as pessoas que comandam as tarefas. Jorge Luiz Borges escreveu que  “o tempo é a substância do qual somos feitos”. Nós somos tempo. Precisamos tratá-lo com leveza e generosidade, dispor dele com sabedoria. Façamos a nossa agenda, vamos cumprir tarefas, mas vamos dar tempo para nós mesmos e para aqueles que amamos. O tempo é o que nós temos de mais precioso, a nossa melhor parte.

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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