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Quem tem medo do vazio?
Yasily Koloda | Unsplash
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Em vez de combater a tristeza e a ansiedade, aprendi a abrir espaço e escutar as vontades miúdas.

Durante os primeiros 18 anos da minha vida, antes de vir a São Paulo cursar jornalismo, eu ouvia pelo menos uma vez por semana meu pai repetir um dos seus bordões morais preferidos: “Primeiro a obrigação, depois a diversão.” A frase, como você pode imaginar, era uma moldura para todas as ocasiões em que eu encarava uma escolha entre fazer o que eu queria e o que alguém queria para mim. Assim, minha reação, a cada repetição do bordão, era sempre de irritação profunda. Já o desfecho variava.

Na maior parte das vezes, eu me resignava a cumprir o que parecia ser minha sina e me entregava à obrigação. Nas raras ocasiões em que me rebelava e invertia a ordem supostamente imutável das prioridades, era acompanhado por uma culpa que muitas vezes estragava todo o prazer da escolha.

Esforço e prazer

Quando enfim eu decidia fazer algo pelo simples gozo, alguma obrigação ou compromisso moral acabava se esgueirando para dentro da diversão. Na pelada com os amigos, por exemplo, eu era um zagueiro comprometido em marcar. Quando finalmente roubava a bola, logo entregava para alguém mais criativo, que certamente teria algo inusitado ou divertido a fazer com a redonda.Tenho na memória inúmeras situações que em tese proporcionavam prazer, mas na prática se traduziam em esforço.

Finalmente, aos 44 anos, minha imensa dívida de diversões postergadas foi levada a protesto. No caso, protesto do meu corpo, que àquela altura vivia entre crises de tristeza, ansiedade e desinteresse geral. Dessa forma, movido pelas obrigações, eu tinha me conduzido para um pesadelo profissional, relacional, mental, emocional, físico e metafísico. Assim, meu modus vivendi estava falido. Eu estava quebrado.Decidi tirar um período sabático.

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Crédito: Amy Rollo | Unsplash

Sem folga de mim

Minha intenção com o sabático era me deixar guiar pela vontade, pelo prazer, pela diversão. Eu não queria obrigação nenhuma até onde a vista pudesse alcançar. Com alguma antecedência, comecei a avisar clientes, parceiros de trabalho, amigos e familiares que eu ia dar um tempo. As pessoas se interessavam, queriam saber o que eu ia fazer.

Eu não tinha a menor ideia. Deixar-me guiar pela vontade era um movimento desconhecido para mim, eu não sabia que músculo tinha que contrair (ou relaxar). Eu me sentia como quem tenta aprender a mexer a orelha ou levantar uma sobrancelha, com aquele olhar compenetrado num rosto que vai se contorcendo aos poucos, parte por parte, absorto em um mundo paralelo.

Enfim, o vazio

Logo, aos poucos, fui lapidando uma resposta. Quando finalmente o sabático começou, o discurso estava uma jóia: “Ah, vou tentar sustentar um vazio interior por um tempo suficiente até que alguma vontade eloquente apareça, para que eu possa segui-la.” Pareceu uma promessa prazerosa para você? Pois é, para mim também não. Sem que eu percebesse, a obrigação tinha se esgueirado para dentro da minha mochila e estava embarcando comigo na aventura.

O primeiro destino nem era parte do sabático. Era fim-de-ano. E não me parecia certo contabilizar como tal uma viagem de Réveillon. Chamei de pré-sabático. Mas foi ali que começou o aprendizado.

Vazio

O vilarejo baiano onde vi raiar o ano de 2014 estava cheio de gente de fora, que não se conhecia. O tempo todo eu estava cercado de pessoas alegres se apresentando umas às outras, contando histórias do passado e falando dos projetos e planos para o futuro.

Recém-rompido com o meu próprio passado e com uma neblina de dúvidas e incertezas a cobrir o ano que começava, eu não tinha nada a dizer. De fora, meus dias pareciam perfeitos, entre banhos de mar e de sol, conversas à sombra da varanda, comidinhas e bebidinhas.

Mas lá dentro crescia um incômodo que não combinava com a paisagem. Foi numa das muitas tardes perfeitas e angustiantes que eu entendi: Isso é habitar o vazio. O incômodo eram as obrigações, me cobrando ação imediata. Entender esse processo me deu uma serenidade que não combinava com o zumzumzum da galera conversando ao meu redor.

medo do vazio

Crédito: Jake Blucker | Unsplash

Apenas a vontade

Por fim, sem que eu percebesse, meus pés me tiraram dali. Meus olhos se ergueram para o fim de tarde no coqueiral. Meus ouvidos se habituaram ao silêncio dos passarinhos e do vento. Meu rosto sorriu quando meu corpo me sugeriu, numa onda de alegria, um caminho possível para o sabático.

Aprendi naquela tarde que eu não precisava de uma vontade eloquente, tamanho GG, para me guiar. Qualquer vontade podia operar a magia que eu buscava. E sempre tinha uma pronta para se apresentar, se eu abrisse espaço para que ela emergisse e parasse um momento para ouvi-la.

Não levei adiante o projeto de sabático que surgiu naquele dia. Outros cenários se descortinaram e eu fiz novas escolhas, que me levaram a outros caminhos. Assim, nos meses que seguiram, me entreguei às vontades mais do que jamais havia me permitido. Foi um período em que sorvi a vida como uma manga madura, com o suco escorrendo pelos cotovelos.

O que permanece

Alguns traços dessa atitude aprendida no sabático me acompanham até hoje e estão presentes em minhas escolhas. Ao mesmo tempo, outros estão instalados em mim, mas operam de forma intermitente: às vezes disparam e às vezes se calam. Algumas vontades voltaram para a sombra. Aceito, acolho, agradeço.

Decidi escrever este texto porque passei os últimos dias disperso, mergulhado no celular, interagindo freneticamente em redes sociais, num misto de ansiedade e tristeza. Foi aquele incômodo familiar que me lembrou o caminho: é assim habitar o vazio. Parei. Aguardei. Ouvi. E estas palavras emergiram.

Achei que você ia gostar de saber.


RODRIGO VERGARA já quis ser biólogo, músico, morar na praia, ter filhos, viver no exterior e surfar na Indonésia, entre outros sonhos aos quais não deu corda. 

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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