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Quando o passado não passa
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O que nos acontece pode inverter o sentido do tempo, minar a energia do presente e impedir o caminho para o futuro

Para os gregos havia dois grandes fardos que pesavam sobre a vida humana. Duas forças enormes que inviabilizavam a felicidade: o passado e o futuro. Para eles, a razão era óbvia. O passado e o futuro impediam o homem de habitar — e amar — o único tempo que realmente existe: o presente.

Portanto, a prisão — no passado ou no futuro — matava a vida. O passado comporta sentimentos que nos puxam para trás, para o que já aconteceu. Ao invés de estarmos ativos no presente, estamos estáticos e anestesiados pelo passado. E quais são esses sentimentos? A nostalgia, o arrependimento, o remorso, a culpa, o ressentimento. Não é sem razão que Espinosa denominava esses estados de “paixões tristes”. Sentimos saudades do que vivemos, “dos bons e dos velhos tempos”; olhamos para as consequências das nossas escolhas e sentimos culpa; visualizamos o rota percorrida e nos arrependemos. Passam meses — às vezes anos — e ainda perguntamos a nós mesmos “por que fiz ou disse aquilo?”, “por que alimentei aquela insanidade?”.

Se depois de muita luta conseguimos nos desvencilhar do passado, caímos nas garras do futuro. Entram em cena a ilusão e a esperança. Encontramos refúgio na “certeza” de que no futuro tudo será melhor: quando mudarmos de casa, de emprego, de relacionamentos… A convicção é de que tudo vai melhorar, mas não hoje, não agora, mas no futuro. E, novamente, não estamos no presente.

Tempo perdido

Esse é um drama conhecido, um clássico da arte de viver. O estoico Sêneca diz que “à força de viver no passado, à força de viver no futuro, nós deixamos de viver. Ora, o presente é a única dimensão real do tempo: o passado não é mais, é um nada; o futuro ainda não é, é um nada; apenas o presente existe, e nós não estamos jamais nele”. Apesar de Sêneca ter feito esse alerta há quase dois mil anos, as estatísticas confirmam a sua atualidade. A nostalgia e a esperança marcam os extremos das duas grandes doenças da modernidade: a depressão (excesso de passado) e a ansiedade (excesso de futuro).

“Não sinto o que eu penso” 

Se temos consciência da importância de viver no presente porque razão continuamos a insistir na insanidade de habitar tempos que não existem? Se racionalmente sabemos a direção da seta do tempo, onde está a dificuldade? Talvez o primeiro ponto seja o não alinhamento entre o pensar e o sentir. Você já deve ter notado que entre o que se pensa e o que se sente há uma distância enorme. Às vezes, passamos anos nos preparando para uma mudança de vida e quando ela chega, percebemos que todo o trabalho foi em vão. Sofremos como se tudo aquilo nunca tivesse passado pela nossa cabeça. De repente, todas as nossas certezas, tudo o que pensávamos que sabíamos, desaparece.

Na minha cabeça não é assim

Sabemos que o tempo só anda para trás em filmes de ficção científica, que o passado é inalterável, que o futuro é incerto e volátil. Sabemos, não é? Não sabemos. Todas as teorias físicas sobre o tempo nada adiantam para nós porque, na nossa cabeça, na nossa complexa condição, habitamos simultaneamente os três tempos. É por isso que o grande Agostinho de Hipona — o mais sagaz pensador sobre o tempo de toda a história da filosofia — dizia que o passado e o futuro são tempos da alma, não existem na materialidade. Nós vivemos na dimensão circular dos três tempos. Acontece um fato agora. Voltamos para o passado. Projetamos o futuro. Agimos agora. Voltamos para o passado. Vislumbramos o futuro.

A física postula que um evento presente só pode afetar um evento futuro, jamais o passado. Portanto, o passado é inalterável, certo? Não. Se o passado só existe na nossa mente, então nós podemos mudar o passado. Os adeptos da ciência podem pensar que essa ideia é um desvario filosófico, então trago para a discussão a afirmação de Albert Einstein: “A distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão”.

Na mente

Talvez a psicologia explique melhor. Jordan Peterson, um dos mais importantes pensadores da atualidade e com grande experiência no terreno — é psicoterapeuta — na sua obra “12 Rules for Life” lança luz nesse fenômeno. Imagine que você está assistindo um filme onde só acontecem coisas más. Porém, no final, tudo acaba bem. Tudo se resolve. O final feliz muda completamente o significado de todos os acontecimentos anteriores, que passam a ser vistos como valiosos.

Agora imagine outro filme onde acontecem muitas coisas interessantes. Noventa minutos depois, você começa a desconfiar. Pensa que é um ótimo filme, mas há algo errado e vem à sua mente o “espero que o cineasta arrume um sentido para tudo isso”. Porém, o filme termina abruptamente, sem fecho, sem conclusão, sem sentido.

De nada adiantam as coisas belas e interessantes que aconteceram durante o filme. De nada adianta o tempo que você ficou envolvido na história e desfrutou do filme, você se sente insatisfeito e frustrado. Vê? Os últimos dois minutos do filme, mudaram completamente os quase 90 minutos passados. Agora transporte essa experiência do cinema para a sua vida. Quantas vezes não notamos isso nas nossas próprias histórias? O presente pode mudar o passado.

Será?

Você poderá cair na tentação de pensar que tudo aquilo que nos acontece pode ser contado como uma notícia do bom jornalismo — com objetividade e com o máximo grau de verdade possível. Não pode. Você já deve ter visto ele por aí, o exercício de um casal contando — separadamente — como eles se conheceram. Surpresa: as narrativas são completamente diferentes. Isso acontece porque quando tentamos reconstituir o passado, lembramos de algumas partes, mas esquecemos outras — embora sejam de igual importância. E não é porque é passado, o mesmo acontece com o presente.

Estamos cientes de alguns aspectos  que nos rodeiam, mais inconscientes de outros. Categorizamos a nossa experiência, agrupando alguns elementos. Há uma arbitrariedade misteriosa que envolve tudo isto. Não conseguimos fazer um registro abrangente e objetivo do que nos acontece porque simplesmente não sabemos, não captamos o suficiente. Isso porque também não somos objetivos. Estamos vivos. Somos subjetivos. Eis a grande complexidade da vida.

No nevoeiro

Estamos no presente, mas tudo que nos chega comparamos com o passado e vislumbrando o futuro. Onde está exatamente a fronteira entre os acontecimentos? O que deve ser incluído na história? O que podemos reter?

A má notícia é que esse retrato da condição humana como uma foto desfocada pode ficar ainda pior quando passamos por períodos difíceis. A busca por clareza ganha contornos de urgência. Ficamos desesperados à procura de uma história coerente sobre nós mesmos, algo que faça sentido. O relato do nosso infortúnio é longo, sinuoso, cheio de emoções. Tentamos compreender e resumir o que aconteceu com um único objetivo: guardar na memória. E aqui entra um aviso: a memória não é o passado. É uma ferramenta de proteção futura contra fantasmas e traumas e, por isso, ela precisa ser bem construída.

E nessa atribulada saga não tem nenhuma boa notícia, nenhum atalho? Claro que tem (afinal, também estou aqui para isso). Os outros podem ajudar imensamente. Alguém que nos escute — seja um amigo ou um profissional — acelera e torna menos penoso esse processo. Verbalizar as nossas histórias, ouvir a verdade do outro, traz luz e sentido ao que nos acontece. O outro pode ajudar, contribuir para o nosso poder de transformar o passado numa memória bem-sucedida. O que enxergamos no presente, muda o passado. E eliminando o fardo do passado, temos mais energia para o presente e mais confiança para abrimos os braços para o que ainda está por vir.


Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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