
Procura-se pessoas altamente sensíveis
O cheiro do pão entrando pela janela invade a sala. Quente, na chapa, com manteiga. Certamente faz companhia ao café que foi denunciado pelo aroma intenso. Moído na hora, faz toda diferença. Ouvi o barulho do moedor. Admiro o timing do vizinho, que escolheu a boa hora pra preparar o café da tarde, a chegada do temporal. Aquela brisa soprando a roupa no varal e roçando no rosto só pode ser aviso de chuva. Ainda bem, quem sabe assim o suor para de escorrer pelas costas e marcar a camiseta, no formato da cadeira do home office. Ao menos o sol já se escondeu, a reunião terminou, a criança conseguiu tirar a soneca da tarde e eu posso imitar o vizinho no cardápio do café.
Todos esses acontecimentos que precisaram de um parágrafo cabem num instante. A vida é rica de estímulos, a questão é quantos deles somos capazes de capturar. Já me perguntaram de onde vem meus textos, e a maioria vem desse instante no qual tudo em mim é poro. Fayga Ostrower, artista nascida na Polônia e uma vida inteira no Brasil, afirmava que ser sensível é elemento básico do processo criativo. O mundo nos afeta o tempo todo e assim o sentimos, mesmo que de forma inconsciente. Mas percebê-lo são outros quinhentos. E aí está o ponto: nossa criatividade se alimenta do que capturamos conscientemente, como cheiro do pão invadindo a janela.
De quantas camadas é feita a realidade? E quantas somos capazes de perceber? Há quem saiba ler o tempo nas nuvens e o horário pela posição do sol. Quem reconheça a direção nas estrelas e a estação do ano nas árvores. Gente assim não olha a vida por cima, sente e compreende ela por dentro. E daí, faz música, texto, poesia, arte, conteúdo. Cria.
Acredite, tem pessoas altamente sensíveis por aí. Uma a cada quatro, ou 20% da população, pra ser exato. O conceito existe mesmo e com direito a uma sigla: PAS – Pessoas Altamente Sensíveis. Ser altamente sensível não é um transtorno ou doença é uma condição. É ter consciência muito maior de todos os detalhes em seu entorno. Uma percepção aguçada para cada estímulo externo. São pessoas mais empáticas, intuitivas, criativas e cuidadosas.
Parece muito bom, né? Da até vontade ser um PAS. Todavia, segundo a psicóloga, escritora e criadora do termo, Elaine Aron, quem é altamente sensível não se sente tão bem assim em ser. É que sensibilidade tá ainda longe de ser um atributo bem visto e aceito, num mundo cão que tem pressa. Não sinta demais, não temos tempo pra isso. Somos a sociedade do não reparei. Viu aquilo ali? Não, não reparei. Mas parece que temos tempo de sobra para ficar parados em frente a uma tela em branco ou numa sessão interminável de geração de ideias, porque precisamos inovar. Queremos ter boas ideias, mas não queremos saber de onde elas vem.
Acontece que criatividade não entra pela janela como o cheiro do café no meio da tarde. Pensando bem, entra sim, entretanto, é preciso abrir os poros. É preciso ser sensível, pelo menos um pouco mais.
Tiago Belotte é fundador e curador de conhecimento no CoolHow – laboratório de educação corporativa que auxilia pessoas e negócios a se conectarem com as novas habilidades da Nova Economia. É também professor de pesquisa e análise de tendências na PUC Minas e no Uni-BH. Seu Instagram é @tiago_belotte. Escreve nesta coluna semanalmente, aos sábados.
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