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Por um mundo menos humano
Kai Bossom | Unsplash
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O título foi escrito corretamente, é isso mesmo que você leu. Neste mês, Rodrigo Vergara nos apresenta uma perspectiva diferente sobre o impacto humano no planeta a partir do conceito de humanização. 

Eu acho curioso quando ouço ou leio frases pedindo uma “humanização” de aspectos diversos da sociedade: parto humanizado, abate humanizado, atendimento humanizado, tratamento humanizado, trabalho humanizado.

Parece-me que o uso da expressão pretende adicionar uma qualidade de empatia, de sensibilidade com o outro. Não tenho certeza. Tenho um hábito linguístico para as ocasiões em que uma expressão me soa ambígua: encontrar seu antônimo. O adjetivo humanizado vem em oposição a que?

A impressão que me dá é a de que humanizado se opõe a egoísta. E é aqui que me cutuca aquela curiosidade descrita no primeiro parágrafo. Porque, na minha maneira de ver, não há coisa mais humana que o egoísmo.

Nosso “me, me, me” (em português, “eu, eu, eu”) é uma criação tão exclusiva do homo sapiens que inverte até o imperativo genético de deixar descendentes.

Pelo meu bem-estar, minha comodidade e meu ego poderoso, toco fogo na floresta, consumo os recursos e produzo lixo, mesmo sendo confrontado, diariamente, com as evidências cada vez mais evidentes de que esse meu comportamento resulta em um planeta em frangalhos para meus filhos e netos. Um planeta humanizado.

Ilhas flutuantes de lixo que ocupam milhões de quilômetros quadrados de oceano, perda de biodiversidade comparável à da queda de um meteoro, colapso de serviços ambientais essenciais à vida como a regulação climática, a renovação de estoques pesqueiros e o ciclo hídrico. Nenhuma espécie foi capaz desse feito. Isto é um planeta humanizado.

Curioso.

Humanices

Um amigo me disse que está cansado de “humanices”. De gastar seu tempo e sua atenção com essa espuma de picuinhas, das imensas às ínfimas, desse interminável melodrama humano sobre a Terra. Quem disse o que sobre quem, quem ficou ofendido e respondeu o que, causando a briga, a prisão, a compra, a venda, a morte, o lançamento, o aumento, a diminuição, o fim e o recomeço de sei lá o que.

Tem enredo para todos os gostos e conjuntos de valores. Há novelas sobre injustiça, vilania, dominação e vítimas. Tem as que versam sobre amores, paixões, sacrifícios e traições. Outras se ocupam de ganância, cobiça, liderança e sucesso. E outras tantas sobre tecnologias, invenções e descobertas.

A lista é infinita. Alguma do catálogo certamente te interessa, te engaja, te mobiliza, te faz ficar acordado ou até te rouba o sono. Nós, humanos, com nossas humanices.

Vazio e presença

E o que há para além das humanices? Não tenho resposta. Qualquer pensamento parece contaminado de significado humano. Qualquer palavra é uma humanice. No entanto, quando faço essa pergunta, minha atenção se projeta para além de mim, como se fosse lançada num espaço vazio, distanciando-se da minha importância no mundo e da espuma de ideias que me ocupam, como um astronauta que abandona uma nave condenada, em busca do futuro.

Além de mim, quando os significados vão ficando para trás, perdidos no infinito, encontro sensações, encontro os cheiros e sons que me cercam, encontro as emoções que o não saber permite: espanto, encantamento, surpresa.

Entretenho-me com o mistério banal de estar vivo, respirando sob esse céu, pulsando num fluxo ininterrupto de energia em permanente transformação.

Desconectado das humanices, não há resistência, ansiedade, anseio ou comparação. Estou aqui, agora, atento ao que há. Minha companheira se dirige a mim e estou disponível. Nada me ocupa, a não ser sua presença. Nossos padrões de interação tradicionais não aparecem. Sinto-me inteiro.

Mais doses de mistério

Isso foi ontem, depois de conversar com o amigo. Hoje, muitas humanices voltaram. Já discuti, já me irritei, já sofri, vivi o desalento que me ocupa quando confronto esse momento desafiador que vivemos. Espero pelo próximo momento não-humano.

Para não terminar o texto com um sabor amargo, compartilho o que me sugeriu o amigo. Se eu não posso (ou talvez não consiga, ou não queira) eliminar as humanices, que pelo menos eu tente equilibrar melhor o alimento que dou à minha atenção, reduzindo o teor de humanices e aumentando as doses de mistério, de contato com esse mundo banal e vivo que está sempre à minha volta.

Achei que você gostaria de ler sobre isso.

Leia todos os textos da coluna de Rodrigo Vergara em Vida Simples


RODRIGO VERGARA trocaria todos os adjetivos que o definem mais facilmente (jornalista, ator, improvisador, facilitador de grupos) por uma vida menos humana.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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