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Por que é tão difícil “pensar fora da caixa” sobre julgamentos e rótulos
asap rocky | Unsplash Os limites da linguagem para descrever o comportamento das pessoas.
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Quando as atitudes não cabem nas palavras que as definem, é praticamente impossível tentar “pensar fora da caixa” sobre rótulos, estereótipos e julgamentos que construímos como sociedade.

O segundo atleta mais vitorioso da história do surfe é o australiano Mark Richards, com 5 títulos mundiais, todos vencidos na década de 1970, quando a profissão de surfista ainda era bem amadora. Kelly Slater, o primeiro dessa mesma lista, tem mais que o dobro de títulos de Richards: 11 troféus, erguidos entre 1992 e 2011, no ápice do profissionalismo do esporte. Não sei se você notou, mas foram 20 anos entre o primeiro e o último títulos mundiais de Kelly.

Quer dizer: último até agora, porque Kelly continua competindo. E vencendo. Em fevereiro deste ano, 2022, o careca bronzeado de olhos impressionantemente azuis faturou a primeira etapa do circuito mundial, que ocorreu em Pipeline, no Hawaii (eu adoro essa grafia com dois ii), considerada a meca do esporte. Foi a 29ª vez que Kelly competiu profissionalmente em Pipeline. Foi seu oitavo caneco.

Seu adversário na final, Seth Moniz, tinha na ocasião 24 anos. Isso é menos da metade da idade do campeão, que completaria 50 anos dali a dez dias. Kelly, graças à vitória, tornou-se o surfista mais velho a vencer uma etapa do campeonato mundial masculino de surf. Moniz, nascido e criado no Hawaii, nunca venceu uma etapa do circuito mundial, muito menos em casa. Sua família e amigos estavam excitadíssimos por sua performance nas baterias anteriores. O moleque estava sobrando.

Já Kelly havia vencido alguns adversários no sufoco. Num dos primeiros duelos em Pipeline, precisando de uma nota 7,2 para não ser desclassificado, Kelly achou uma onda quando faltavam 10 segundos para terminar a bateria, tirou um tubo incrível da cartola (nota 9,23) e avançou.

Mas, na bateria final, Kelly sobrou, botou o moleque no poke e jantou o jovem surfista, para frustração de Moniz e de sua família.

Pois bem.

Imortal

O tempo da prova acabou, a sirene tocou, o público vibrou, os dois competidores se cumprimentaram ainda na água e vieram surfando até a praia. Na areia, é de praxe que torcida ou amigos ergam o campeão nos ombros e o carreguem até o pódio. Mas, em Pipeline, em 2022, quebrando o protocolo, quem tomou essa iniciativa foi Seth Moniz.

A participação de Moniz em Pipeline será imortalizada. Nas imagens de triunfo que entrarão para a história como a possível última vitória de Kelly em Pipeline, o jovem estará lá, sob o campeão, rendendo homenagem e erguendo no próprio lombo o atleta que o derrotou. A posteridade guardará para sempre sua humildade e respeito.
Grandeza

A Liga Mundial de Surf transmite ao vivo as etapas de seus campeonatos. E entrevista os surfistas que vencem cada bateria. Em sua trajetória campeã em Pipeline, Kelly me surpreendeu nos depoimentos que deu a cada vitória, pela postura humilde em relação a cada adversário derrotado.

Ele enalteceu suas posturas, suas performances, suas qualidades. Falou das vantagens que eles tinham em relação a ele e pareceu sincero quando disse que teria ficado feliz por eles se tivessem vencido.

Inclusive, em uma dessas vitórias, aquela que eu comentei antes, em que Kelly venceu nos instantes finais, a divulgação de sua nota vitoriosa ocorreu quando ele já estava em terra, à frente das câmeras, ao vivo. Kelly pediu desculpas, interrompeu a entrevista e foi cumprimentar o surfista derrotado.

Na entrevista após a final, não foi diferente. Kelly enalteceu Seth Moniz, agradeceu a trocentas pessoas e se emocionou.

O melhor

Vi o vídeo e compartilhei em minhas redes sociais, ressaltando a atitude de Kelly Slater, que é sem dúvida o maior surfista profissional que já existiu. Há quem diga que ele é o maior atleta da história do esporte profissional. Melhor que Pelé, Maradona, Michael Jordan, Muhammad Ali, Rafael Nadal, Michael Schumacher, Tom Brady.

Instantes depois, um amigo querido me mandou uma mensagem comentando que Kelly era mesmo incrível, mesmo sendo antivacina. Eu não sabia e confessei isso a ele, meio sem saber o que sentir.

Meu amigo me ajudou, comentando: “E aí você vê como a vida é complexa. É um bom exercício para a gente entender que [a vida] não tem ‘caixinhas’”, querendo dizer, como você já entendeu, como é limitada a atitude tão comum de rotular, sem entender o contexto de cada um.

A dor e a delícia da linguagem

Depois desse comentário, lembrei-me da entrevista à Oprah dada pela Jill Bolte Taylor, uma neuroanatomista que sofreu um AVC e, ao perder parte das capacidades cognitivas, se iluminou. A hemorragia varreu a parte do cérebro que processa a linguagem. Jill esqueceu tudo o que sabia sobre medicina, mas ganhou em troca a capacidade de escolher os pensamentos que quer. Desde então, decidiu pensar só no que valia a pena.

Segundo ela, toda a limitação e o sofrimento oriundos do ego são um custo por termos linguagem. As palavras, diz ela, são simplificações da realidade que utilizamos para nos comunicar, mas que acabam por substituir os elementos complexos da realidade. Deixamos de manejar a realidade e passamos a manejar os conceitos que criamos sobre ela.

“A linguagem é feita de caixinhas”, respondi ao meu amigo. “Cada palavra é uma caixinha tentando conter a realidade”.

E completei com uma frase que me pareceu significativa para mim mesmo: “Não dá para desconstruir o uso das caixinhas por meio do uso das caixinhas”.

Toda a nossa grandeza, complexidade, incoerência e volatilidade não podem ser traduzidas por rótulos, títulos, adjetivos ou julgamentos inertes, fixados em algum momento do passado. Eles não nos representam. Somos muito mais ricos, interessantes, voláteis e multifacetados do que isso.

Kelly merece mais do que isso. E nós também.

Leia todos os textos da coluna de Rodrigo Vergara em Vida Simples


RODRIGO VERGARA pensa, titubeia, sente, sofre, ri e chora, o tempo todo. Essa verdade é mais relevante do que qualquer caixinha que tente descrevê-lo.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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