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Os mitos: abrigo e oásis para os tempos de caos
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Muitos reclamam da estagnação, mas continuam sentados. Afinal, experimentar um novo caminho é um exercício incômodo. Exige disposição e vontade. Os “não complica”, “é melhor não inventar”, “está procurando dor de cabeça”, “é melhor ficar quieto no seu canto” ressoam na sua cabeça. Eu — uma adolescente inquieta — após o relato de um passeio frustrante,  ouvi inúmeras vezes da minha mãe que ela “havia me avisado” e fechava o assunto com o sábio ditado popular “boa romaria faz, quem em sua casa está em paz”. Na verdade, todos desestimulam a experimentação. E pelo seu potencial de risco, ela faz parte do kit da educação que recebemos.

Deixar a porta aberta a possibilidades ignoradas não é fácil. Quantas vezes, no imediato segundo em que o barco parte, não olhamos com nostalgia para a terra? Mas há uma forma segura de se expor às novas experiências e vivências? Penso que não, mas há uma relativamente segura e de fácil acesso. Pode ser feita em qualquer hora e lugar e se você não se sentir em segurança, nem à vontade…. basta fechar o livro.

Eu refiro-me a leitura dos clássicos. Seu conteúdo é universal e tem o mesmo status da obra de arte. Gigantes russos — como Tolstói e Dostoiévski  — “guiam” pessoas de todas as nacionalidades e épocas. O leitor de Machado de Assis ou Eça de Queiroz se reconhece nos seus personagens. Os seus temas — a ambição, o amor, a vaidade, a traição, o ciúme, o preconceito, a maldade — fazem parte da condição humana. Estão presentes no mundo de hoje, na nossa história, no que sentimos. São como uma conversa com alguém muito sábio, que se importa com o que você sente, escuta as suas angústias e compartilha das suas dúvidas.

Dentro desse contorno, a mitologia  têm um papel de destaque.  Vários estudiosos procuram descobrir o mistério que cerca os mitos. O que se sabe é que eles carregam características da psique humana. Povos que viveram em épocas remotas e habitaram lugares distantes, sem nenhuma conexão, partilham mitos semelhantes. A mitologia grega — a nossa, porque é a base da cultura ocidental — está presente em nosso dia a dia. Recriadas através de filmes e novelas, usadas a exaustão pela psicologia — como o complexo de Édipo — mostram como funcionamos. Com ela entendemos melhor os nossos medos, a nossa própria história.

E,  como aficionada pela cultura grega e os clássicos, tenho que acrescentar mais uma razão. Há encanto maior do que ter acesso ao conteúdo de um livro — por mais difícil que seja — que Nietzsche leu,  que Sloterdijk leu ou qualquer outro autor que você admira? Ou o fascínio de saber que uma pessoa do século II teve o mesmo livro de Platão que tenho agora nas minhas mãos? Está gravado na minha memória o dia em que tive acesso a lista dos livros que Spinoza possuiu. Como ele viveu em relativa miséria e, no seu tempo, os livros eram caros, seu pequeno acervo foi registrado no inventário das suas posses. Era necessário vendê-los para suportar as despesas do funeral. Por conta desse preciosismo legal, hoje temos acesso ao que o filósofo lia. E quando, anos mais tarde, soube que Nietzsche fora um leitor voraz de Spinoza, passei a partilhar — com modéstia, claro ­— uma espécie de cumplicidade com Nietzsche: tínhamos os mesmos gostos!

Confissões excêntricas à parte, considero uma joia rara deste nosso tempo, o acesso a este grande número de clássicos, suas reedições, suas traduções melhoradas. Afinal, apesar das mazelas do consumismo e das doenças trazidas pela tecnologia, ainda há muita coisa maravilhosa. E não é necessário a ida às livrarias ou bibliotecas. Devido a sua antiguidade, o acesso a eles são de domínio público e a maioria está disponível na internet, em formato PDF. Basta abrir e ler.

No que toca aos mitos —  apesar da sua onipresença na arte e na cultura ­—  não há muitos livros. Mas eles estão pulverizados e podem ser obtidos na internet.  E vale a pena buscá-los. Além da experiência de alma, não há diversão melhor. Para começar, os personagens principais, os deuses, tem um perfil muito longe do previsível. Enquanto outros povos buscam atribuir santidade e bondade ao seu Deus (ou Deuses), os gregos não escondiam que suas divindades era cruéis, vingativas e passionais.

E o enredo? É de deixar o júri de Cannes de boca aberta. Uma amostra e para facilitar o trabalho, narro aqui o mito sobre a origem do Minotauro (existe figura mais famosa do que essa?). Um alerta: os mitos, produto da oralidade, estão fragmentados e há muitas versões diferentes para o mesmo mito. Peço permissão para uma reconstrução possível e sem compromisso.

Conta-se que Minos  — em disputa com os seus irmãos —  ambicionava o trono de Creta. E como naquela época o candidato precisava provar que a sua eleição era vontade divina, Minos reuniu os cretenses em frente ao mar e solicitou fervorosamente a aprovação do deus do mar, Poseidon (posteriormente rebatizado de Netuno pelos romanos). O plano articulado por Minos fazia inveja ao melhor dos políticos populistas de hoje. Ele afirmou que do fundo do mar surgiria um lindo touro branco e esse era o sinal de que ele era o escolhido pelos deuses.

Já de conluio prévio com Poseidon, Minos prometera que se o touro surgisse do mar e ele fosse escolhido rei, em troca, sacrificaria o touro em um culto a ele. Tudo acertado. Diante da multidão maravilhada surge — no limite entre o horizonte e o mar — um lindo touro branco. Minos era o rei de Creta. O que não estava previsto era a extrema beleza do touro. E Minos — como político que era — resolveu enganar Poseidon e sacrificou outro touro no lugar daquele. O deus percebeu o embuste e, enfurecido, resolveu dar o troco. Bem, pensou: se Minos gostou tanto do touro, farei com que a sua mulher goste dele ainda mais, muito mais. E assim, foi feito.

Pasifae, a mulher de Minos, apaixonou-se perdidamente pelo touro. Porém, para o seu desespero, seu amor não era correspondido. Por maior que fosse o seu desejo e suas carícias, o animal lhe era totalmente indiferente. E aqui entra a parte cômica: Inconformada, Pasifae pede a ajuda de Dédalo (inventor extremamente popular da época, foi ele que confeccionou as asas de Ícaro, por exemplo).

Pasifae apresentou a sua ideia: queria que ele fizesse um disfarce de vaca para que ela pudesse consumar o seu amor pelo touro. O plano deu certo e Minos foi corneado pelo seu touro favorito. Como era previsto, da união carnal, nasceu um ser metade touro, metade homem, e foi maldosamente batizado pelos cretenses como “Minotauro”, literalmente, o touro de Minos.

Revoltado com a traição e as más línguas dos cretenses, Minos confinou o seu suposto filho no labirinto (também idealizado por Dédalo). E, como era de se esperar, também sobrou para o povo. Como punição pelas piadas, Minos decretou que todos os anos 14 jovens súditos deveriam servir de alimento à fera…

Esse mito faz uma visita a parte primitiva da mente, um tempo em que os homens tinham mais consciência do seu livre arbítrio. Uma reflexão que mede o embate entre os apelos da alma e as paixões instintivas que se movem dentro de cada um de nós. Mostra como as nossas escolhas lidam com o destino, com os deuses ou com os outros. Quantos não tentam prever o futuro e lutam para modificar um destino que adivinham? O mito ensina a intervir no mundo, a confrontar o desequilíbrio das circunstâncias e, nesse exercício, revemos nos personagens as nossas próprias angústias. Através deles podemos visitar a nossa essência — a porta que dá acesso ao sentido da vida e — principalmente — o nosso espaço de paz no meio do caos.

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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