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O lado bom das emoções negativas
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Elas são desagradáveis? São. Mas são nossas. Às vezes somos tristes, complicados, inconvenientes…. Não há problema. Faz parte. Na nossa humanidade cabe o mundo. Ela aperta e solta, aquece e esfria, harmoniza e inquieta, caminha para a frente, mas também recua. 

Muito cedo aprendi a desconfiar dos “bonzinhos”. Na infância, fui testemunha de meninos em seus projetos cruéis, como amarrar e arrastar gatos pelo quintal. Das meninas, mais sofisticadas, conheci a agressão psicológica: “Sabia que eu adivinho o futuro? Você vai morrer no mês que vem”. Como esses atos eram devidamente escondidos do mundo dos adultos, minutos depois, via essas mesmas crianças recebendo elogios enternecidos: “um anjo”, “minha filha é uma princesa”… Compreendi que a verdade pode não ser de fácil acesso, que a distância entre o que se mostra e o que se esconde pode ser imensa. Um entendimento que se transformou numa espécie de prenúncio do que viria a ser a minha profissão — afinal, a primeira regra de ouro do jornalista é checar a informação.

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Nunca perdi de vista esses precoces ensinamentos sobre as pessoas. No meu primeiro dia de trabalho fui almoçar com as minhas novas companheiras de equipe numa grande mesa coletiva. No extremo oposto do refeitório, vi uma garota almoçar sozinha. Ela sorriu para mim e eu retribui. Perguntei quem era e aconselharam-me a manter distância: “ela é esquisita, sempre almoça sozinha, ninguém gosta dela”. Passados os anos, eu não me lembro de uma única companheira da mesa coletiva, a “esquisita” que almoçava sozinha, é até hoje minha amiga e uma das melhores pessoas que conheço.

Anjos e demônios

O cenário é normalíssimo. Na busca de ser aceito, aprendemos desde cedo a esconder e a rejeitar nossas emoções negativas.  Na infância — a gênese da construção da nossa personalidade — somos ensinados que o que é certo e o que não é, e quais emoções devemos cultivar e quais devemos banir. Os nossos pais censuram as nossas emoções negativas e com isso, aprendemos também a censurá-las. Na vida adulta, aprendemos que elas não são bem-vindas, funcionam como repelentes sociais e não são politicamente corretas.

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Ocorre que a vida não é tão simples. O ensinamento de que devemos cultivar os estados positivos e banir os negativos não é correto. Um lado e o outro comportam muitas variáveis e há muita aparência e engano. Não há veredictos absolutos sobre as emoções humanas. Dito isso, vamos começar com uma má notícia: não é possível banir os pensamentos negativos. Os pensamentos e os impulsos negativos habitam o nosso cérebro e são componentes da nossa humanidade. Não é possível anulá-los. São como os cisnes negros, eles existem e não há nada a fazer sobre isso.

Ame os cisnes negros

Depois da má notícia, agora a boa: precisamos das emoções negativas. Sem elas, a vida seria impossível. Essa lição é um dos grandes legados do pensamento de Aristóteles. Todas as virtudes precisam de emoções negativas e positivas. A intolerância — e toda a raiva que ela desencadeia — é muito má? Depende. Ela pode ser muito boa. Afinal, recomenda-se que sejamos intolerantes com o mal. Mas convém que façamos com que a nossa intolerância caminhe junto com o bom senso, com o respeito.

A raiva — servida como um dos sete pecados capitais — sempre foi de grande utilidade para o homem. Ela é o motor da ação necessária. Precisamos dela para a nossa defesa, é o soldado armado do nosso instinto de sobrevivência. Na luta pela vida, parte da força do animal vem da raiva.

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O filósofo alemão Peter Sloterdijk, na sua obra Range and Time (Raiva e tempo, tradução livre) faz uma genealogia da raiva. Ele não se ocupa dos estragos que a raiva faz — o foco do politicamente correto. Ao invés disso, ele centra a sua análise no que se perde suprimindo a raiva e afirma que o seu reverso é o heroísmo e o sentido de honra. Sem raiva, sem honra. Ao longo dos séculos fomos jogando terra na “condenada”.  Diminuímos a nossa capacidade para sentir raiva, mas também diminuímos a nossa capacidade de honra e de brio. E ainda tem os efeitos colaterais. Aquele que aprisiona a sua própria raiva, para compensar, tende a apoiar a raiva dos outros. No melhor estilo “faz isso por mim”. Não é à toa que nos últimos anos, alguns países são conduzidos por líderes furiosos.

A lição que vem do cinema 

Recentemente, a Pixar fez um trabalho magnifico sobre a importância das emoções negativas. O filme Divertida Mente (Inside out, 2015), escrito por Pete Docter e Jonas Rivera, narra o dia a dia de cinco personagens que “vivem” dentro da mente de Riley, uma garotinha que se muda com os pais para uma nova cidade. Os personagens são:  Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo.

Docter conta que a história foi inspirada nas mudanças de personalidade que ele observou em sua filha  desde o seu nascimento. A vida da garotinha é guiada pela Alegria, mas quando a família se muda, os “moradores” da cabeça de Riley entram em conflito. O inusitado do filme — e quem não viu, perdoe-me o spoiler — é o papel da Tristeza. No início, é apresentada como a personagem menos atraente, mas no final,  a Tristeza vira a heroína da história. É ela que organiza os pensamentos de Riley e traz o final feliz.

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Mas a tristeza não é a única. Emoções como a inveja, o medo, o nojo, a raiva também têm o seu protagonismo. A raiva pode ser protetora; o medo traz cautela e bom senso; o nojo ajuda a sermos seletivos e fazer as melhores escolhas; a tristeza é ferramenta para resiliência e ajuda a interiorizar, assimilar e digerir as perdas e os danos; a inveja mostra o que podemos ser e impulsiona a auto-superação.

Mas, tal como mostra no filme, não damos importância a eles, estão ali como atores secundários — quase ocultos —como os maus da fita, meros figurantes. E tentamos levar a vida ignorando-os, escondendo-os. E nos últimos tempos, com o famigerado politicamente correto, eles estão amordaçados e maltratados. Nisso, não treinamos a capacidade de conviver com eles, de ouvi-los. E com isso, vivemos numa esquizofrenia existencial. Somos vistos como pessoas serenas e bondosas e, de repente, perdemos a paciência e explodimos. Os outros ficam surpreendidos e magoados. E nós também. E lá tratamos de voltar a esconder as partes de nós não bem-vindas. Experimentamos a culpa e não gostamos de nós mesmos. E como só valorizamos os nossos pontos positivos, ficamos ressentidos. E ficamos funcionando em circuito. Renegamos uma parte de nós, elas surgem, somos recriminados, voltamos a renegá-las.

Bem x mal

Eu penso que você já percebeu o filme. Quantas vezes não somos surpreendidos com a rasteira de uma pessoa que julgávamos a encarnação da ética e da bondade? Quantas vezes achamos inacreditável que aquele vizinho, simpático e sorridente, entre quatro paredes surrava a esposa? Precisamos reconhecer que as emoções negativas são nossas, fazem parte  da nossa personalidade. Equilibrar emoções positivas e negativas é a chave do autoconhecimento. Só conhecendo-as é que poderemos lidar melhor com elas.

Aqueles que tentam mostrar só as suas facetas positivas e soterrar as negativas, tornam-se pessoas mutiladas, vítimas. A negação do nosso lado “menos bom” adoece a mente e são responsáveis por bloqueios e traumas. Porque só as emoções positivas não dão conta da vida. Sem elas não sabemos nos proteger e nem lutar por aquilo que queremos. Elas também são as nossas armas. Na adversidade, são os pensamentos negativos e o cenário de tristeza que traz o discernimento. É o medo que afasta-nos do ruido lá fora e traz a concentração necessária para a busca de saídas. E quando o nosso racional não encontra uma solução, é da quietude da tristeza que vem o consolo.

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Devemos, sim, acolher todas as emoções negativas. É do aceitar os nossos cisnes negros — sem máscaras, sem véus e sem desculpas — que vem a maturidade… e a conquista da nossa autenticidade.

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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