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O “e se eu tivesse…” e outros dramas das nossas escolhas
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O que dá para fazer é se preparar, aumentar a resiliência para o ineditismo da vida. É preciso trabalhar a flexibilidade, enrijecer a carapaça, hidratar a pele, expandir a envergadura

Todos os dias fazemos escolhas. Das mais simples — como o que comer ou o que vestir — até as mais complexas — como uma profissão ou um relacionamento amoroso. E certamente você já experimentou a agonia da dúvida, seja numa decisão com múltiplos caminhos ou numa — não tão simples — questão de “sim” ou “não”. E essa é só a primeira parte; depois vêm os desdobramentos. Você pode constatar que pouca coisa mudou; que o resultado não era o esperado; que você sequer caminhou na direção pretendida; ou simplesmente chegou a conclusão que errou na escolha.

Seja qual for o resultado, só há uma certeza: não dá para voltar atrás. O jogo é esse. Com o tempo, tenta-se melhorar a mira: reconstrói-se os passos de uma decisão e procura-se compreender em que ponto houve o desvio… E lá mandamos tudo para o nosso banco de dados interno — para uma próxima vez. Porém, nem sempre identificamos dados para armazenar. Com alguma perplexidade, nota-se que tudo fugiu ao controle, houve uma série de acontecimentos inesperados  — perto do doido — outros fatos passaram longe do seu radar; houve dias sem energia… Sabe no jogo de xadrez quando, sucessivamente, o seu adversário movimenta peças que nem sequer estava no seu foco de visão? Bem-vindo à vida.

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Não desistiremos

Cientes dessa complexidade, muitas vezes fugimos às decisões e deixamos tudo como está. Passamos de quatro a seis anos num curso universitário, mas a meio, descobrimos que não queremos ser advogado, enfermeiro, professor… Mas continuamos lá porque não temos outro plano em vista, porque nos dizem que temos de terminar o que começamos, porque um curso superior é bom para o currículo… É só por isso que não desistimos? Não. Gostamos de ter um caminho, um objetivo, seja ele qual for. Faz parte da nossa humanidade. E, para completar, somos apegados à esperança, aos milagres… Bem… Os ventos podem soprar ao nosso favor… mais um ano a profissão poderá ganhar um novo perfil e — melhor — poderemos nos transformar numa pessoa completamente diferente.

Escolher e controlar

Não é possível viver sem planos, mas grande parte do que nos acontece não é passível de controle ou padrão. Somos emocionais e complexos. Um mesmo gesto pode despertar raiva e calma. Um dia podemos acordar confiante, mas a simples observação de uma cena na rua pode mudar completamente esse estado. Podemos passar dias sendo levados passivamente de uma direção a outra, dependendo de quem ou do que encontramos. Reagimos até aos sinais mais sutis daqueles que nos rodeiam. Mas mesmo assim  — porque o nosso cérebro tende a ordem — tentamos assimilar e armazenar padrões. E isso é bom e é ruim, pois assim como guardamos padrões úteis — que facilitam a vida — também colecionamos outros nocivos e inadequados. Por isso, ficamos presos a eles, comprometendo a nossa paz e a dos outros.

E por falar em outros… O problema maior é quando o controle chega as relações afetivas. Mas do que qualquer projeto profissional, lutamos para que elas deem certo. A tarefa é pesada: tentamos controlar o nosso emocional, o do outro e tudo o que está ao redor, inclusive outros que cercam a relação… Todos conhecem a dificuldade dessa gestão. A patologia surge quando os viciados em controle, munidos do seu vasto banco de dados, tentam escapar ao ineditismo da vida e começam a “fabricar” cenários. Esses têm um nome — e não é bonito — são os manipuladores. A psicologia tem um arsenal enorme sobre essas criaturas. Esses não se relacionam, controlam. E vão fazendo vítimas por onde passam, mas há quem consiga escapar delas. Você já notou que algumas relações acabam repentinamente e sem explicação?  Uma razão possível para o fim abrupto pode ser esse: não era relação, era manipulação.

Lançados no mundo   

Patologias à parte, depois de alguma experiência começamos a assimilar que não estamos realmente no comando. Um absurdo incômodo que tentamos esquecer. Não admitimos o fato nem sozinhos no quarto com a luz apagada. Como isso é possível? Uma das razões de não sermos senhores na nossa própria casa é que quando fazemos planos imaginamos nós e o mundo estáticos. Ocorre que nunca estamos parados. Parte da grandeza da filosofia de Heidegger vem desse pequeno insight. Antes dele, a filosofia pensava o homem parado no tempo. Para ele esse foi um erro crônico da história do pensamento; não é “o homem”, é “o homem e o tempo”. A sua obra máxima — O Ser e o Tempo — revela o homem como um ser lançado no mundo. E esse “ser-aí”  — literalmente, em alemão, dasein — está em movimento e não se deixa fotografar.

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Antes de Heidegger, uma parte do caminho já havia sido feita por Baruch Spinoza. O homem, lançado no mundo, nunca é sempre o mesmo. A cada passo, ele afeta e é afetado, apequena e é apequenado, maravilha e é maravilhado, agride e é agredido, transforma a si próprio e transforma o outro. Os encontros com o mundo físico e com os outros nos modificam. Alguns encontros são conscientes, outros não; alguns reagimos, outros aderimos passivamente; uns fazemos oposição, outros nos deixamos levar. E no meio dessa impermanência, temos de fazer escolhas, algumas definitivas. Como é possível?

A tomografia da escolha

Será que é possível saber a motivação verdadeira de tudo o que decidimos? No ano passado, o meu filho de 15 anos tomou uma decisão: queria abandonar o estudo do violino iniciado aos cinco anos. Pedi para ele adiar a decisão e pensar melhor. Após um tempo, ele voltou ao assunto. Estava cansado e queria mesmo desistir. Eu ponderei o cenário e decidi que não permitiria que ele abandonasse o instrumento. Argumentei que seria uma regressão, seria jogar todos os anos de estudo na lata do lixo. Ele aceitou.

Após dois meses dessa conversa, o meu filho, repentinamente — depois de 10 anos — apaixonou-se pelo violino. De menos de meia hora de estudo esporádico, passou para mais de duas horas por dia. Deu um salto enorme na técnica. Por que isso aconteceu? Bem… o violino é o mesmo, o professor é o mesmo, o que se conclui que a mudança foi nele. Ele é um outro diferente daquele que queria desistir do violino. Por que? Não faço ideia e ele também não.

E se eu…

Às vezes me pergunto como seria se eu tivesse permitido que ele desistisse… E aqui chegamos a outro acidente perturbador do nosso trajeto: o insone “e se eu…”. Recordamos o passado e olhamos nos olhos das nossas escolhas.

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Foi a melhor? Por que escolhi isso e não aquilo? E se eu tivesse dito sim em vez de não? Fernando Pessoa debruçou-se sobre esse drama no poema “Obra Édita”: “Quem escreverá a história do que poderia ter sido o irreparável do meu passado/Na noite terrível, relembro o que fiz e o que podia ter feito/Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei/O que só agora vejo que deveria ter feito/O que só agora claramente vejo que deveria ter sido (…)/ Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita/ Se em certo momento/ Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim/Se em certas conversas/ Tivesse dito as frases que só agora, no meio-sono, elaboro/ Se tudo isso tivesse sido assim/Seria outro hoje, e talvez, o universo inteiro seria insensivelmente levado a ser outro também”.

Poderia…?

Pensar sobre o que poderia ter sido, é um exercício metafísico natural. E ele não vem apenas motivado pelo arrependimento. Quem nunca imaginou a possibilidade de viver a segunda opção num mundo paralelo? E mesmo que seja só um exercício teórico, ele não deve ser desprezado. O não vivido também faz parte de nós e é parte fundamental da nossa construção como pessoa. Todo mundo pensa no que não viveu e o que não se viveu tem muita força. Porque o “não vivido” impacta e maltrata o “vivido”. Por que os homens temem o casamento? Eles têm medo de dizer “sim” para uma pessoa? Não. Eles têm é medo de dizer “não” para todas as outras. E, mais aterrador: têm medo de dizer “não” para todas aquelas que eles ainda irão conhecer no futuro. São muitos nãos.

Tudo é preparo

A solução é viver sem planos. Dá? Não dá para viver sem planos. Não dá para ir agarrando e soltando ao sabor das ondulações da vida. E não é possível fazer uma lista de regras, porque o caminho é sempre novo e irrepetível — para o bem e para o mal. O que dá para fazer é se preparar, aumentar a resiliência para o ineditismo da vida. É preciso trabalhar a flexibilidade, enrijecer a carapaça, hidratar a pele, expandir a envergadura, melhorar a destreza, aumentar a velocidade… Faça planos para amanhã, para daqui a 5, 10 anos, mas mantenha a porta aberta a todas as possibilidades do devir. E, sobretudo, deixe espaço para a pessoa que você ainda vai se tornar.

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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