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“Não sei o que vou cozinhar hoje”
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Por trás da monotonia do cardápio pode estar o simples desejo de se sentir seguro

Sempre gostei de estar na cozinha. Desde muito pequena. Era um lugar onde me sentia acolhida pelos aromas e pela presença constante da minha mãe. Sempre fui dessas pessoas que entra na cozinha da casa alheia e começa a bater papo com quem está preparando a refeição. E, em minutos, qualquer tipo de barreira que pudesse existir, se desfaz. Acho que o cozinhar promove isso. Mas quem precisa pensar e preparar refeições todo dia sabe o quanto a tarefa de escolher o cardápio diário pode ser cansativo.

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Uma das frases, ao longo da minha meninice, que ouvi minha mãe dizer, com bastante frequência, era: “Não sei o que vou cozinhar hoje”. Ela parecia, muitas vezes, não saber mesmo. Pior, as palavras vinham com uma camuflagem de cansaço e tédio daquele ser e estar: um trabalho diário que nunca findava e que, acredito, não era exatamente o que era esperava para a vida dela. Minha mãe, hoje entendo, colocou muitos dos seus desejos e vontades debaixo do tapete. E isso teve um preço, para ela e também para mim. Crescer vendo minha mãe tão entediada com a própria trajetória não foi lá muito fácil. Me fez me perder, algumas vezes, no meio de tudo aquilo.

Nas refeições tento me encontrar

Neste período em que estar em casa e cozinhar todos os dias é uma necessidade, me vi proferindo a mesma frase: “Não sei o que vou cozinhar hoje”. É claro que, no final das contas, algo sempre é feito. O almoço e o jantar são preparados. Mas, dias desses, ao colocar a mesa de uma das refeições e observar cada um dos pratos ali postos, me dei conta, quase num susto, que eu reproduzia, dia após dia, os pratos da minha infância. Percebi que da minha cozinha saia batata gratinada, estrogonofe, suflê de milho, feijão temperado a maneira nordestina, bife a milanesa, bolo de chocolate. Os mesmos pratos da minha infância. As mesmas combinações e acompanhamentos. Se eu sei fazer outras coisas? Claro. Risotos, massas caseiras, assados, tortas, quiches.

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Foi neste momento que me dei conta que, por meio daquelas refeições, eu tentava encontrar, no meio de tantas incertezas, a mim mesma. Era um jeito de eu não me perder. Um rastro da menina que fui e da mulher que me tornei. Não era sobre comida, era sobre a minha história e a necessidade de mantê-la como um porto seguro no meio do maremoto. A partir daquele dia, finalmente, eu também entendi que tudo bem ir além. E então o cardápio ficou mais variado: guacamole, cuscuz marroquino, peixe assado, nhoque. Pratos que não tem a ver com a minha infância, porque não era algo que minha mãe preparava. Eles têm a ver com a pessoa que sou hoje. Reencontro.

Deixe a sua busca de identidade aflorar

Quando a insegurança, o medo bater novamente, a necessidade de colo, de casa, de busca de identidade aflorar, talvez eu retorne a batata gratinada ou ao suflê de milho, clássicos da cozinha da minha mãe. É que agora sei qual é o fio que preciso puxar para me reconectar. E tudo bem.



Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.

A vida pode ser simples, comece hoje mesmo a viver a sua.

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