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Laranja e beterraba
Joanna Kosinska | Unsplash
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O amor pode ser simples, basta desvalorizar os problemas e aproveitar os momentos positivos que o cotidiano oferece.

O som da música toma conta do espaço e transforma todas as coisas em movimento. Vânia desperta assim, com bom ânimo. E dança ao ritmo da melodia latina cantada pela coluna. Com as notas ondulando no ar, harmoniosas, alegres, toma o seu banho, arranja-se com distinção, põe-se bonita. Antes de professora, é pessoa. E acredita que todos devem mostrar a melhor versão de si mesmos — uma questão de confiança.

Todos os dias, portanto, dança e canta. E a sua atitude positiva é acompanhada pela do homem com quem casou recentemente. Este, um jovem poeta, desperta tão cedo como ela. Juntos, praticam ioga ao raiar do sol, meditam, preparam-se para o melhor dos dias, todos os dias. Enquanto Vânia se ocupa dos preparativos necessários para sair de casa, movida pelo ritmo da salsa ou da bachata, o homem prepara o lanche da mulher, que põe numa sacola para ela levar para o trabalho.

Uma pausa para o lanche

Agora Vânia é a professora. Os alunos estão no recreio, os professores na sala de convívio e as auxiliares ocupadas com os seus afazeres. As crianças têm meia hora para correr, saltar, brigar. Os adultos para conversar, invariavelmente sobre as dificuldades do ensino e a necessidade de mudanças que nunca mais chegam. Porém, ambos comem e bebem os seus lanches no tempo do intervalo.

Agora a professora Vânia afasta-se das colegas. Está ao canto da sala, intrigada com o sabor extra no suco que não reconhece. A cada dia, há um elemento novo no suco de laranja e beterraba que o marido prepara.

— É um toque extra de amor — justifica-se ele.

Ontem foi o acréscimo da canela, anteontem açafrão. Antes de anteontem curcuma. Andando para trás, pimenta do reino, salsa, coentros, manjericão, cebolinho, castanha de cajú, amendoim, pistácios, sementes de abóbora, girassol, enfim, um pouco de poesia no entender do poeta. Mas, hoje, à professora Vânia não vem o diferencial da garganta, do palato, dos lábios e da língua. Não está nem perto de descobrir o que há de novo neste suco de laranja e beterraba.

Há um conflito para resolver

A professora Vânia tem as pernas cruzadas, o frasco com o suco entre as mãos, pousado na perna sobreposta. Degusta, em busca do segredo. Saboreia. Mas,

— Professora Vânia!, professora Vânia! — irrompe na sala a auxiliar, falando alto. Traz consigo arrastado pelo braço o Gabriel. — Vá, diz agora à professora Vânia o que você fez! — Ante o silêncio do aluno, continuou: — Professora Vânia, o Gabriel bateu na Aline — e, virando-se para ele, que se esforçava para se libertar da mão forte da mulher —, não tens vergonha, tu, bater numa menina? Os teus pais não te ensinaram que não se encosta um dedo numa menina?

— Ela é que começou — apressa-se o Gabriel a justificar-se. — Estávamos a jogar bola e ela deu-me um pontapé de propósito.

— Onde está a Aline? — é tudo quanto diz a professora Vânia, num tom de voz tão calmo que espantou os dois beligerantes.

O ingrediente secreto

Chegam abraçadas, Florinda e Aline. E logo dão de cara com a imagem da professora e o aluno sentados frente a frente, ele com o frasco na mão, lambendo os lábios. Ela, sorridente, observando-o. Vendo-as, é o Gabriel quem se apressa chamar a colega para junto de si. Estende-lhe o frasco. Pergunta,

— que sabor é este?

Aline faz uma careta após a prova. Responde,

— Tem sabor de laranja e uma coisa esquisita.

Reconciliação

Os alunos são dispensados pela professora. Gabriel e Aline sorriem e saem de ombros colados. Atrás deles vai a dona Florinda que, às tantas, ouve um pedido de desculpas da Aline ao Gabriel. E admira-se mais ainda quando o Gabriel se desculpa, cabisbaixo, admitindo ter errado ao revidar. Enfim, ficam sanadas as partes, pensa Florinda.

Mas, sem ter compreendido o papel da professora Vânia nesse processo, Florinda decide voltar atrás para esclarecer a história. Questionada, a professora explicou que eles apenas haviam experimentado o sabor do amor.  “E que sabor tem o amor?”, quis saber.

— Hoje, apenas a laranja e beterraba.


DIDIER FERREIRA  é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios, autor de O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos) e neste seu dia de estreia, escreve convicto de que dias melhores virão. 

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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