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Joias literárias: os intocáveis baixinhos do Seu Luiz
Mariia Zakatiura | Unsplash
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Nesta coluna, Reinaldo Polito compartilha alguns segredos de sua biblioteca particular. Entre eles, a origem de três exemplares raros que chegaram até ele através de um gesto de amor literário.


Quem gosta de livro, mas gosta mesmo, tem o maior ciúme das suas obras. Ai de quem ousar marcar uma página dobrando a ponta como se fosse a orelha. Indignação total! Verdadeiro sacrilégio! E puxar o livro da estante pela parte superior da lombada? Para essa agressão não haveria castigo suficiente. Desespero inconsolável, mais grave ainda, é descobrir a maldita traça perfurando as páginas, agindo como se estivesse em sua própria casa. Revolta e ódio!

Quando Machado de Assis visitou Francisco de Castro para apressá-lo a concluir o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, conversaram durante horas. Foi Aloysio de Castro, filho de Francisco, quem contou essa história ao discursar em sua posse na ABL:

“A visita foi longa e animada. Como estavam a vagar, discretearam de letras, dos insetos que picam os livros, tema obrigatório entre bibliófilos, e, por fim, se bem me lembro, do Sr. Rui Barbosa e da beleza do seu gênio”

Sim, os apaixonados pelos livros sempre tiveram essa preocupação com os insetos. Hoje, com o crescimento vertiginoso dos livros digitais, esse fantasma tende a desaparecer. A não ser que sejam pessoas como eu, que se dedicam a preservar obras raras.

Relíquias portuguesas

Devo ser o maior colecionador de livros antigos de oratória em português. Há quase 50 anos frequento os mais importantes sebos do Brasil e de Portugal. Tenho verdadeiras joias, como, por exemplo, “Arte de Rhetorica, que ensina a falar, escrever e orar”, de autoria do Doutor Manoel Pacheco de Sampayo Valladares, publicado em Lisboa no ano de 1750.

Imagem mostra página de abertura do livro Arte da Rhetorica.

Foto: Arquivo pessoal/Reinaldo Polito

Outra obra que ocupa lugar privilegiado nas minhas estantes é “Mechanica das palavras em ordem A’Harmonia do discurso eloquente, tanto em prosa como em verso”, de autoria de Antonio Neves Pereira, publicado em Lisboa no ano de 1788.

Imagem mostra a primeira página de um livro raro.

Foto: Arquivo pessoal/Reinaldo Polito

São apenas dois exemplos das dezenas de obras raras que fui garimpando ao longo das últimas décadas. Além dos livros técnicos, tenho também outros com sermões dos maiores pregadores da história, como “Sermões e práticas”, do incomparável Manoel Bernardez, publicado em Lisboa no ano de 1711.

Cuido de todos com muito carinho. Mando encadernar cada um dos exemplares com capas que são verdadeiras obras de arte. É a minha paixão. Gosto de passar madrugadas inteiras folheando e lendo com calma essas páginas que atravessaram três séculos.

Ao ver a data dessas publicações, penso no contexto da época em que foram editadas. Como era a política, a economia, os costumes sociais naquele momento em que saíram da gráfica e foram para as mãos de seus proprietários.

MAIS DE REINALDO POLITO:

– Posse na Academia Brasileira de Letras

– A caderneta da Dona Maria

– Uma biblioteca na minha vida

Paixões compartilhadas

Visitar sebos na esperança de encontrar essas relíquias se tornou meu passatempo preferido. Um dos que mais contribuíram com a minha coleção foi a Livraria Ornabi, localizada na Rua Benjamin Constant, 141, no centro velho de São Paulo.

Para dar ideia da sua grandiosidade, houve época em que havia nos três andares da loja mais de 350 mil livros. Não era lugar para fazer visita rápida. Valia a pena programar metade de um dia, e até um dia todo para garimpar naquelas prateleiras.

Fazia parte do passeio reservar um tempo para trocar umas palavras com o proprietário, Luiz de Oliveira Dias. Um português esperto, bom de papo e profundo conhecedor de livros, especialmente as raridades que vendia a preço de ouro.

Quando perguntava a ele sobre determinado autor, sua resposta era completa. Descrevia todas as obras que escrevera, o ano de publicação e o estado dos exemplares que mantinha em sua livraria. Era comum aquele simpático comerciante entrar em uma sala especial, onde mantinha seu escritório, e sair de lá com um livro autografado pelo escritor. Todos à venda.

Havia, entretanto, algumas obras que pertenciam à sua coleção particular que ele não comercializava. Não adiantava insistir. Eram livros em tamanho pequeno muito bem encadernados. Ele os chamava de “Os baixinhos do Seu Luiz”. Todos em francês, publicados entre os anos 1901 e 1903: “Oraisons funèbres”, de autoria de Bossuet, em dois volumes; “Discours de réception”, de autoria de Fénelon; “Orationes”, de autoria de M. T. Ciceronis.

Imagem mostra livros baixinhos intocáveis na coleção do Polito.

Foto: Arquivo pessoal/Reinaldo Polito

Ninguém punha as mãos nesses livros sem a supervisão do Seu Luiz. Ele fazia questão de pegar os exemplares da prateleira e colocá-los de volta. Os clientes não se sentiam ofendidos com essa atitude, pois sabiam o que essas obras representavam para aquele velho livreiro.

Ao dar início à coleção, decidi me concentrar apenas em livros publicados antes de 1950 e em português. Aprendi que colecionador que não faz algum tipo de recorte acaba por não chegar a lugar nenhum.

Por isso, esses “Baixinhos do Seu Luiz”, por serem livros editados em francês, não me interessavam. Gostava de manuseá-los, apenas como curiosidade. Nunca soube da história daqueles livros. Cheguei a perguntar, mas o velho proprietário, com ar maroto, desconversou.

Livros órfãos adotados

Um fato inesperado ocorreu. A irmã do Seu Luiz, Arminda, de 93 anos de idade, que morava em Portugal, não estava bem de saúde e exigia cuidados. Ele resolveu encerrar suas atividades em 2007 e ajudá-la. Pôs à venda todo seu estoque de livros.

Antes de anunciar sua decisão, me ligou dizendo: “Professor Polito, o senhor sabe bem do meu apreço pelos livros da minha coleção particular, especialmente os meus baixinhos. Gostaria de deixá-los com alguém que seja apaixonado por livros. A primeira pessoa que me veio à cabeça foi o senhor. Ficarei feliz se aceitá-los.

Coleção de livros com os famosos baixinhos intocáveis.

Foto: Arquivo pessoal/Reinaldo Polito

Por um valor simbólico os livros passaram a ser meus. Hoje estão comigo. Com certeza, ele não poderia ter escolhido ninguém melhor para essa missão. Eu me senti tão homenageado com a atitude do Seu Luiz que os deixo junto aos exemplares da minha coleção. O afeto do velho comerciante pelos pequenos livros me contagiou.

Seu Luiz já não está mais entre nós. Dedicou 62 anos ao comércio de livros. Talvez ele nem tenha tido ideia da dimensão do seu trabalho. De como foi importante na formação de tantos brasileiros e de como deixou um legado maravilhoso de cultura e conhecimento a várias gerações. A começar por mim.

Consegui a maioria dos livros mais importantes naquela livraria da Benjamin Constant. De vez em quando passo em frente. Sei que ali não existe mais nem vestígio da tradicional atividade, mas todas as vezes que cruzo aquela calçada me emociono.

Tenho a impressão de que ainda poderia encontrar naquelas salas o Seu Luiz, e que renovaria o prazer de passar algum tempo conversando com ele.

Volto para casa, pego nas mãos os queridos baixinhos e passo um tempo revendo suas páginas. Com muita saudade!

Leia todos os textos da coluna de Reinaldo Polito em Vida Simples.


REINALDO POLITO (@polito) é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é “Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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