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Idade é só um número: as mulheres que desbravaram, a pé, a Estrada Real (MG)
As caminhantes diante de um dos marcos da Estrada Real começando a última etapa do Caminho Velho (foto: arquivo pessoal).
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O que acontece quando um grupo de mulheres maduras decide seguir pelos antigos caminhos do ouro e dos diamantes de Minas Gerais? Confira, a seguir, essa grande aventura, narrada pela colunista Juliana Reis.

O povoado mineiro de Bento Rodrigues, onde viviam pessoas tranquilas e trabalhadoras, sumiu do mapa num dia de 2015. Foi varrido por uma avalanche de lama quando uma barragem de rejeitos da mineradora Samarco/Vale/BHP estourou. Por vários quilômetros, ela desceu tirando vidas, atingindo o rio Doce e devastando tudo até o Oceano Atlântico. O resultado foi um dos maiores desastres socioambientais do mundo.

Falar desse episódio é importante porque uma das personagens dessa história é a sobrevivente Sandra, que se salvou fugindo por uma montanha enquanto o mar de lama levava sua casa embora. Um mês depois do desastre, Sandra foi até a rodoviária da cidade vizinha de Mariana carregando as únicas coisas que tinha conseguido resgatar dos escombros: o registro da casa e um cartão surrado que dizia que ela havia sido um anjo no caminho de alguém.

Bilhete das caminhantes para Sandra: amigos em momentos difíceis (foto: arquivo pessoal).

O bilhete era assinado por quem ela vinha receber na rodoviária. Eram mulheres que Sandra havia ajudado anos atrás, muito antes do desastre, dando pouso e comida em sua casa em Bento Rodrigues. Eram caminhantes que passavam por ali viajando a pé pela Estrada Real. Agora, sabendo do ocorrido, elas é que vinham ajudar Sandra, trazendo um abraço solidário.

Aventura virou livro

O relato completo de como essa amizade começou está no livro Real é a nossa estrada – Uma senhora aventura de algumas determinadas senhoras. Publicado em 2016, a obra teve sua tiragem esgotada. Agora, graças à generosidade da autora e da editora, está online e aberto para todos que quiserem ler sua história.

Escrito por Sonia Estefani (umas das “senhoras” do grupo), e com texto de apresentação de Maria Brockerhoff, conta a viagem de seis mulheres maduras dia a dia pela Estrada Real, em Minas Gerais, um caminho de mais de 1600 km criado pela coroa portuguesa no século 18 para escoar o ouro e os diamantes até os portos do Rio de Janeiro.

As trilhas e ramificações reais voltaram à vida neste século como rota turística. E o livro de Sônia, inicialmente um despretensioso relato de amigas andarilhas por uma bela estrada, acaba revelando mais: desvenda uma face muito atual do interior do Brasil, e confirma o quão extraordinária é a força das mulheres quando elas se juntam para realizar um sonho.

A Estrada Real e a vida preciosa

O livro nos ensina sobre a mítica motivação dos nômades e dos andarilhos e descreve o contato enriquecedor com a gente mineira. Também descortina, meio que sem querer, um mundo dominado pelas vorazes mineradoras do século 21. Elas estão lá o tempo todo, movimentando a economia, claro, mas também interferindo profundamente nos traços originais das majestosas Minas Gerais.

Assim, encantamento e desconforto se alternam na leitura. E o que nos alivia desse incômodo são as lições e soluções das personagens caminheiras, cujo poder pessoal, acredito, teria sido ignorado por suas famílias a vida inteira se este livro não tivesse sido escrito.

Pois é, Real é a nossa estrada expõe o resgate da grandeza de mulheres que passaram a maior parte de suas vidas abafadas pelo amor e pelas demandas de suas famílias, maridos e filhos. Eu, filha de uma das personagens, posso dizer que só a conheci verdadeiramente depois que li sobre suas atividades de viageira caminhante.

A cada passo dado, a cada toque de cajado no chão, elas libertam algo que até então vinha esquecido ou sufocado por anos de dedicação ao outro. Revelam-se! Ora são meninas travessas, ora mulheres potentes e centradas, sempre sábias anciãs… E, às vezes, umas boas de umas piadistas, isso sim!

Devorei as páginas com bastante emoção, porque sou personagem em alguns capítulos. Estive com elas em alguns trechos. E só iniciei esta resenha com o chocante episódio da lama porque ele mostra o quão longe da própria realidade uma simples viagem pode acabar nos levando.

O grupo das caminhantes rumo a Itamonte (MG) (Foto: arquivo pessoal).

Desfazendo as amarras

Foi no início dos anos 2000, enquanto faziam o Caminho de Santiago, na Espanha, a pé, que quatro amigas perceberam ser mais capazes do que até então imaginavam. Motivadas, ali mesmo começaram a falar sobre atravessar andando uma tal de Estrada Real no Brasil. Elas já se aproximavam dos 60 anos. Eu as acompanhava e ouvi a conversa. Pensei que jamais conseguiriam. Cortar o famoso caminho de Santiago de Compostela, sim. Mas desbravar uma rota antiga que pouca gente conhecia? Duvidei.

Apesar de conviver com elas, eu ainda fazia parte daquela turma que não percebe que mães têm sonhos próprios. E que custa a acreditar que, caso tenham, encontrarão hora para realizá-los.

Para a minha surpresa, de volta ao Brasil, colocaram-se a trabalhar com determinação nos planos para a grande caminhada. Felizmente, aprenderam a usar a doçura para se soltarem das amarras amorosas das famílias, como mostram algumas mensagens reproduzidas no livro.

Em 2007, já munidas de suas mochilas e cajados, chegaram a topar com quem as desmotivasse. Caso do motorista que as encontrou no trajeto e desembarcou afoito dizendo que “a Estrada Real não é um Caminho de Santiago!”, antes de se apresentar como um dos idealizadores da Estrada Real como rota turística. Tarde demais. Elas já estavam caminhando.

A verdade é que dentro de alguns anos, a Estrada Real — feita a pé, de carro, em bicicleta ou a cavalo, como peregrino ou turista convencional — iria se tornar uma experiência bastante popular e profundamente transformadora e emocional. Quando essas senhoras começaram a caminhar, pouco ainda se conhecia dessa aventura.

Certamente, foram desbravadoras e colocaram ideias boas na cabeça de muita gente.

As caminhantes diante de um dos marcos da Estrada Real começando a última etapa do Caminho Velho (foto: arquivo pessoal).

Gostaria de ir junto, mas…

Conforme os capítulos e os quilômetros passam, fica evidente que as diferenças de característica as une e nunca é fonte de discórdia. Dividem-se em tarefas de acordo com suas habilidades. A elas juntam-se outras, como a autora do livro — dona de mãos mágicas para macramê e jardinagem, presença vital numa família essencialmente masculina e que, no caminho, aprende a usufruir do sossego a que tem direito.

Às vezes, surge alguém que “gostaria de ir junto, mas…”. É aí que brota um dos mais sutis aprendizados: enquanto apresentarmos as justificativas que nos impedem de realizar um sonho, não precisaremos admitir que desistimos dele.

Há desculpas para tudo. Real é a nossa estrada é também a história de um grupo de mulheres que um dia não mais admitiu usar esse truque na vida.

As caminhantes descansam numa das raras sobras: não há desculpa para não ir (foto: arquivo pessoal).

Contemplação ou selfies?

Há algo que difere este livro de outras narrativas viajantes que já li ou que ouvi. Não há nesse grupo ansiedade alguma em se fazer ser visto. As viajantes-personagens, totalmente distraídas pelos encontros e belezas da estrada, contrastam fortemente com o turista convencional de hoje, aquele habituado às selfies.

Em sua disposição para aceitar os riscos da chuva, do vento e das portas fechadas, elas não se inquietam com a chegada. O final é o que menos conta. Elas querem é caminhar. Elas estão caminhando. E o que importa é… caminhar.

Certa vez, numa viagem solitária, cheguei a aprender sobre como aproveitar o momento presente. Já li sobre atenção plena no agora – ou mindfulness, como se diz hoje por aí. Mas nenhum texto me mostrou tanto sobre estar verdadeiramente presente quanto este. Em determinado momento, a autora senta-se para descansar no silêncio. Diz, no trecho, que “sente o cheiro da noite se aproximando”. E se dá conta de como é fácil que passemos a olhar as coisas extraordinárias como se fossem banais.

Rumo ao fim da Estrada Real: descida da antiga Serra de Petrópolis na direção do Rio de Janeiro (foto: arquivo pessoal)

Riso livre e os anjos da Estrada Real

Um clássico desta história é o riso que as acompanha. As piadas internas são tão tolas que a gente acaba achando graça por isso. É daí que surge um tal “dicionário iconoclástico”, conjunto de expressões próprias criadas para identificar as situações do caminho.

Custo a acreditar que filhos, maridos e netos compreenderão tais bobices. Não importa. Elas não precisam de aprovação. Não mais. São caminhantes livres.

Dois tipos de “anjos” são recorrentes na jornada. O primeiro, costuma aparecer na figura de pessoas que surgem facilitando a remoção de obstáculos e fornecendo ajuda em momentos difíceis — a Sandra, de Bento Rodrigues, foi um desses “anjos do caminho”. O segundo, traz uma mensagem manifestada a cada manhã em uma leitura meditativa, escolhida casualmente, determinando a intenção do dia que vai começar. Todas as mensagens estão publicadas no livro, antecedendo cada capítulo.

Eventualmente, elas definem 5 atitudes que fazem uma boa caminhante:

  1. Sentir segurança, mesmo em presença do desconhecido;
  2. Confiar nas forças e no apoio do caminho;
  3. Amar verdadeiramente o que está fazendo;
  4. Gostar da simplicidade e abrir mão do conforto;
  5. Saber que conviver com o diferente enriquece.

Por fim, confiando nas forças do caminho, elas seguem dando ao leitor a impressão que, de fato, estão protegidas por uma egrégora de luz.

O que as envolve é uma força invisível, oriunda da soma das energias que elas emanam com seus bons pensamentos, sentimentos e intenções.

Fim da estrada

As caminhantes continuam fazendo história, cada uma por sua rota pessoal. Uma delas adoeceu e passou a caminhar do outro lado. Dôra continua presente. Às vezes é possível senti-la nos pontos de passagem, na chegada ou só no planejamento da próxima viagem. Ela passou a viver no espírito do grupo, que segue caminhando, ensinando que a gente pode mais do que imagina.

O fim da Estrada Real fica nas ruínas de Porto Estrela, nos fundos da Baía da Guanabara, por onde o ouro e os diamantes iam embora do Brasil. As viajantes teimam, mas a vida rejeita esse final — como se dissesse que é preciso continuar. E elas continuam. Mas aí, só lendo o livro para entender.


JULIANA REIS é contadora de histórias de viagem, pois acredita no turismo como forma de transformação humana. No Instagram, descreve suas impressões no perfil @viagenstransformadoras. Escreve aqui, no portal Vida Simples, mensalmente.

Confira todos os textos publicados na coluna de Juliana Reis em Vida Simples.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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