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Fobia de compromisso
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O clássico “até que a morte os separe” foi substituído pelo “até segunda ordem”. Ou — no português europeu — o evasivo “logo se vê”.

Nos últimos meses tenho andado assombrada com a quantidade de coisas que me surpreenderam. E não foi por falta de eu não considerar todos os cenários, é que eles não eram o que pareciam. Penso que na pós-modernidade essa perplexidade é cada vez mais comum e já não é possível “lermos” a realidade sozinhos. Precisamos de visita guiada. Nesse contexto, o filósofo Zigmunt Bauman é um mentor imprescindível. Teórico do conceito da sociedade líquida, Bauman expõe a olho nu as condições (e os limites!) que formatam os nossos passos e é considerado uma bússola para a compreensão dos tempos em que vivemos.

No contexto líquido, Bauman afirma que somos essencialmente consumidores. Todos os nossos vínculos seguem o padrão da relação “comprador-mercadoria”. Das mercadorias não se espera que abusem da nossa hospitalidade. Elas devem deixar o palco no momento em que comecem a perturbar em vez de alegrar. Dos compradores não se espera — nem eles estão dispostos a isso — que jurem fidelidade eterna às aquisições que trazem para casa ou que lhes concedam direito de residência permanente. A relação do tipo consumista é — desde o início — “até segunda ordem”. Até que se mude de ideia.

Você, um utilitário

Quando pensamos na nossa máquina de café essa relação parece-nos óbvia. Nada mais desagradável do que acordar no anseio do aroma do café e descobrir que a máquina não funciona. Ocorre que esse padrão comprador-mercadoria estende-se para todas as outras relações e são regidas pelos mesmos valores. Busca-se o equilíbrio custo-benefício e o desejo de fidelidade, por exemplo. Assim como nas relações pessoais, o mercado também quer  “fidelizar o cliente”. A duração também é um valor. Queremos saber a vida útil de um eletrodoméstico, se tem garantia e de quanto tempo. Bem, nas relações, há uma grande satisfação nos amigos de longa data e nas ligações amorosas ainda “paira no ar” o “até que a morte os separe”.

Como não dá para viver de outro jeito, afinal viver é relacionar-se. Vamos improvisando, fabricando novas categorias. A clássica “união de fato”, formada por casais que decidiam coabitar — mas “não para sempre” — deu lugar a relações onde assume-se o status de “é complicado”. Existem as relações lights, as ainda mais lights e até a “não relação”. Essa última, muito atual, sobrevive nas palavras, mas não em “carne e osso”.

Fobia

Como resultado desses exercícios — e do olhar apurado de consumidores — evoluímos para a fobia de compromisso. O medo é generalizado. Hoje busca-se minimizar os riscos, reduzir os custos do período prazeroso e, ao mesmo tempo, antecipar o futuro desastre. Diz Bauman: “o fantasma que ronda o futuro das relações é como uma mosca que pode contaminar e estragar o mais doce néctar… Bem, a ideia é matar a mosca antes que ela comece a sua perniciosa travessura”.

Entrar num relacionamento é sempre um negócio arriscado, já que os espinhos do convívio tendem a se revelar gradualmente. Diante da possibilidade de um compromisso, é quase impossível não pressagiar desconforto e sofrimento.  Começar uma relação — administrar as oscilações, assumir o compromisso de mantê-la, apesar das adversidades  — é como assinar um cheque em branco.

Duração

E como são feitos esses novos modelos? Começam por atacar o grande vilão — do casamento à torradeira elétrica: o tempo. “Na relação light reduz-se o tempo de duração para que ela coincida com a mesma satisfação que produz: o compromisso é valido até que a satisfação desapareça ou caia abaixo de um padrão aceitável — e nem um minuto a mais”, afirma Bauman. E o fim é sem drama. Rapidamente e sem vestígios, o outro deixa de existir. É eliminado.

Amor incondicional  

E quando o outro assegura amor incondicional, como é o caso do cão? Nem mesmo o “melhor amigo do homem” é poupado. Em Portugal, são comuns as campanhas contra o abandono de animais, principalmente no Verão. “Vou viajar, o que faço com o meu cão?” Nos EUA já houve a campanha “um cachorro é para toda a vida, não apenas para o Natal”, uma tentativa de evitar o abandono de animais no mês de janeiro. Em menos de um mês, as crianças — saturadas da energia dos seus presentes natalinos, assim como dos cuidados que eles demandam — já não os querem mais.

No Brasil, são comuns as campanhas como  #PareDeAbandonar. Os animais são descartados. Normalmente quando envelhecem, ficam doentes ou quando há mudança de casa. Esses não ficam apenas a mercê de perigos — como o atropelamento — ficam expostos ao frio, a fome, a sede, as doenças e o mais doloroso: perdem o contato com as pessoas que eles mais amavam na vida.

“Eu não gosto da demanda de um animal de estimação, mas eu gosto tanto de ter um cão para passear na rua. Não tem uma versão light, assim como há entre pessoas?” Sim. Quem disse que o melhor de dois mundos não é possível? Já existe empresas que oferecem o serviço de aluguel para animais de estimação. São cães criados para estarem com donos novos por apenas algumas horas ou alguns dias. São “amáveis e plenamente treinados”. Essa é mais uma ideia de negócio da sociedade líquida: oferecer prazeres tradicionais sem o incômodo da propriedade e do compromisso.

Mais formatos lights?

Recentemente, na renovação do seguro do meu carro, o gerente do banco acenou-me com um produto pós-moderno. Eu pagaria uma módica quantia fixa pelo uso de um carro. Não precisaria levar para a revisão, verificar pneus, pagar imposto de circulação, fazer seguro… Eu não precisaria fazer nada, apenas desfrutar do carro. Ao fim dos três anos, se eu estivesse satisfeita, poderia comprá-lo. Ou não. Poderia simplesmente devolver e escolher outro. Pensei em perguntar se ele conhecia Bauman, mas achei que não era oportuno… Eu refletia e fui interrompida pelo alerta do gerente: “É uma tendência. No futuro, ninguém comprará carro. Esse sistema é muito melhor. Zero preocupações”.

Ah! A contradição

Essa é a tendência: colocar brevidade no lugar onde antes era a permanência. Tudo parece estar no bom caminho, mas eis que o escritor inglês Stuart Jeffries descobriu que uma das maiores locadoras de automóveis aconselha seus clientes a darem nomes pessoais ao carro que alugam com frequência. Mas, olhe melhor: essa não é apenas uma ideia fofa. Ela mostra que ainda que sejamos menos propensos do que nunca a nos comprometermos com alguma coisa — ou alguém — o prazer sentimental das ligações continua forte dentro de nós.

Isso nos traz a realidade e mostra que  “não existem almoços grátis”. Que há um preço a pagar por todo ganho. Você pode se livrar da tarefa desconfortável de cuidar diariamente daquilo que usa ocasionalmente, pode reclamar dos momentos de tédio da sua relação amorosa. Porém, é preciso que se diga que ainda há pessoas que não consideram cuidar do seu carro como algo necessariamente desagradável. Há ainda quem goste da dinâmica de “perder tempo” e da dedicação que exige uma relação.

É que, lentamente — quase imperceptível — cresce dentro de você, em doses mínimas, o prazer dos prazeres: o prazer da ligação. O prazer do “eu-tu”, do “viver para o outro”, do “somos um só”. O prazer de “fazer uma diferença” que não interessa apenas a você. De ser único para alguém. De sentir-se necessário — e insubstituível. Intenso e ao mesmo tempo esquivo, esse sentimento só nasce do convívio, dos momentos preenchidos com cuidado, das areias sedimentadas do tempo. Esses, e só esses, são os fios que compõe o tecido das relações. E são elas, as ligações profundas, as únicas que dão sentido a vida.


Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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