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Eu preciso de espaço!
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A proximidade pode trazer perigo, segurança, satisfação, perturbação, prazer… Como lidar com suas múltiplas facetas?

O espaço — junto com o tempo — é parte da condição humana. Mantemos distância física do que rejeitamos e buscamos a máxima proximidade com o que amamos. Não nos damos conta da sua importância, mas ele está sempre presente, como uma espécie de radar. Acusamos o desconforto quando um estranho se aproxima e nos afastamos. Desejamos a proximidade máxima de quem amamos e, por isso, coabitamos. A legislação estabelece distância mínima entre agressor e vítima. E não se trata de neuroses de citadinos carentes de espaço. Afinal, faz parte do folclore rural as tragédias que envolvem os limites de uma cerca entre vizinhos.

O espaço faz parte do nosso instinto, é o vão que existe entre nós e o mundo. Recentemente vivi uma situação perturbadora. Em duas noites seguidas tocaram a campainha da minha porta. A primeira, às duas da manhã; a outra, perto da meia-noite. A distância entre a porta de entrada e o meu quarto não é pequena, mas assimilei o perigo e paralisei. Escutei duas, três vezes a campainha e permaneci imóvel. No dia seguinte, comentei com vizinhos e, sim, só aconteceu comigo. Fui questionada: “por que não foste ver quem era?” “Tive medo”. “Mas não abrias a porta, era só olhar pelo olho mágico”. “Paralisei”. “Não telefonaste a polícia?” “Paralisei”, repeti.

Fique onde está!

É compreensível o estranhamento dos meus vizinhos. Não costumamos pensar sobre os efeitos do espaço em nós. Aprendemos sobre o que somos com os filósofos, mas aprendemos igualmente com etólogos e zoólogos como Konrad Lorenz e Jakob von Uexkull. Na natureza, se um leão estiver longe o suficiente, a zebra continuará a pastar com cautela. Se a distância diminui, a zebra fugirá. Finalmente, há a “distância crítica”, onde um animal assimila um perigo sem saída. Nesse caso, não há nada a fazer a não ser paralisar, fingir-se de morto e torcer pelo melhor. A “distância crítica” varia de espécie para espécie, de pessoa para pessoa. A minha era a que separava a porta de entrada da minha cama.

Apesar da nossa condição de animal doméstico — reduzimos quase a zero a distância entre nós e os outros — ainda conservamos uma porção selvagem que detecta os perigos da proximidade. Na normalidade do mundo civilizado esses alertas são esporádicos. Ou melhor: eram. Com a chegada da pandemia nota-se um retrocesso nessa domesticação de animal que permite o toque. Uma das novidades trazidas pelo Covid-19 foi nos obrigar a rever toda a nossa relação com o espaço e com a distância dos outros. Na rua, seja quem for, olhamos com desconfiança —  o outro pode trazer o perigo, o vírus. Ficamos alerta e observamos os dois metros recomendados. Em casa, no confinamento com os nossos, o desconforto é ainda mais perturbador porque lutam dentro de nós duas forças opostas: a necessidade de proximidade e, ao mesmo tempo, a sensação de invasão, de falta de espaço.

Saúde mental em risco    

O artigo “A solidão pode ser bem-vinda” (https://vidasimples.co/colunistas/a-solidao-pode-ser-bem-vinda/) aborda a dificuldade em lidar com a solidão imposta pelo confinamento: a ausência de amigos, do sentar-se à mesa num restaurante ou o estar simples na esplanada de um café. Recebi várias mensagens de pessoas que diziam que a solidão era mesmo insuportável e que haviam mudado internamente, que viviam num labirinto de pensamentos obsessivos etc. Porém, recebi também uma avalanche de mensagens que diziam: ok. sinto falta de todas essas normalidades, mas o que eu não suporto mesmo é a minha vida doméstica. “Não aguento a proximidade permanente com o meu cônjuge, com os meus filhos, as rotinas quase coletivas, a distância física que não consigo impor. Como faço para escapar disso?”

Eis o caráter amplo dessa crise. As estatísticas sobre a pandemia — mutações do vírus, contágios e número de mortos — convivem com as estatísticas dos seus efeitos. Em todo o mundo aumenta o número de distúrbios psicológicos (inclusive em crianças), divórcios, violência doméstica e abuso infantil. A estranha forma de vida trazida pelo Covid-19 trouxe dificuldades para conciliar os nossos vários papéis, os relacionamentos e o convívio em espaços partilhados. Como lidar com o estresse, as discussões e os conflitos causados pelo excesso de proximidade?

Eu primeiro

Uma boa parte da solução pode vir do autocuidado. Antes de pensar nos outros membros da família, é preciso primeiro adotar uma rotina para si mesmo. Quando mais permanência no coletivo, mais precisamos de momentos individuais. O que seria esse autocuidado? Qualquer ação para você mesmo: a prática de yoga (ou qualquer outro exercício), banhos de imersão, meditação, conversas virtuais com amigos ou familiares. É preciso que todos os dias — nem que sejam alguns minutos — haja um espaço para recolhimento e solidão. Trata-se de um tempo privado para auto-regeneração, para recarregar as baterias. E não precisa de muito espaço. Na ausência de uma divisão fechada, pode ser um canto da casa e até uma cadeira.

O espaço é subjetivo

Claro que há desafios. A compreensão que temos do espaço está muito longe do que se pode medir com a fita métrica. Para o filósofo alemão Gottfried Leibniz o espaço vai além da sua medida física, há os objetos e os movimentos das pessoas que o preenchem. Portanto, há uma grande componente subjetiva. O lugar, o espaço, a distância só se materializam a partir da percepção desse conjunto. E aqui o entrave: tudo o que envolve o espaço compartilhado precisa ser negociado com os outros que o coabitam. É um exercício que requer comunicação, negociação e regras claras sobre os limites de cada habitante da casa.

As necessidades e os compromissos de todos devem constar em uma agenda coletiva e visível para todos. Cada um precisa saber o que o outro está fazendo naquele momento. Na agenda devem constar ainda os períodos livres e as atividades em conjunto, como as refeições, televisão, conversas ou jogos. Assim, evitam-se os choques de ruídos, a sobreposição de ocupação de espaços comuns e as desagradáveis interrupções. Além da agenda, há que criar regras sobre espaços interditos — proibidos mesmo. Se não for possível uma agenda fixa, podem-se estabelecer regras como uma porta fechada significa que não se pode entrar.

E o autocuidado deve ser feito por todos da família — e estimulado, principalmente para as crianças. Cada um precisa sentir que tem um espaço só seu. Mas não se trata de restringir cada um no seu quadrado. Mesmo com critérios, a ocupação de todos os compartimentos da casa deve ser incentivada.

Não esperado

É verdade que muitas famílias — ou mesmo casais — foram apanhados de surpresa. Eram pessoas que se davam bem, se conheciam e julgavam que seria uma convivência fácil. O que ocorre é que novas realidades trazem novas necessidades. É preciso considerar o outro e suas novas demandas para minimizar atritos e cenários estressantes. E, sobretudo, não desvalorizar a importância e o efeito que o espaço físico  — ou a ausência dele — tem sobre nós. A negociação não é apenas para espaços físicos, é também para limites comportamentais. O espaço “objetivo e subjetivo”, apontado por Leibniz, precisa ser respeitado.

É claro que apesar de parecerem simples, são medidas difíceis de implementar. Porém, vale o esforço, porque elas fazem uma grande diferença na nossa saúde física, mental e emocional. São precauções para evitar que saiamos desse período com sequelas psicológicas como ansiedade, a síndrome da cabana e outras anomalias que inviabilizem o regresso à vida normal. E mais do que regras, as atitudes podem fazer diferença. Esteja atento às suas necessidades, mas não descuide dos outros. As conversas nos períodos livres devem ser incentivadas e durante os períodos de “trabalho/estudo” pode manter-se a conexão com a troca de mensagens ocasionais. Cultivar a harmonia, o bom humor e a gentileza trazem leveza para as rotinas. Não perca de vista que, de alguma maneira, todos estão tentando se adaptar às mudanças. E cada um está fazendo o seu melhor.


Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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