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“Eu nasci assim”, mas a paternidade me fez renascer
Tim Mossholder
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Se eu ganhasse um real a cada vez que respondo “nasci assim”, certamente figuraria em listas de grandes fortunas.

Aliás, foi assim que abri minha primeira palestra. Recém havia completado quarenta anos e era a primeira vez em que falava sobre a minha deficiência. Teatro lotado. Quinhentas pessoas desconhecidas. Pediram uma história inspiradora. Achei graça, mas topei.

Um tapete circular no centro do palco. Um microfone e minhas anotações. Não enxergava ninguém na plateia cegado pelas luzes. Tampouco sabia como palestrar, então respirei fundo e, com a voz trêmula pelo honesto amadorismo, contei a única história possível.

A paternidade que transforma

Em um mundo preconceituoso, onde minha geração não havia sido educada para a inclusão, minha deficiência, uma mão e um antebraço a menos, era fábrica potente de inseguranças e de medos.

A notícia da nossa primeira gravidez contribuiu para o caos aqui dentro.

Tanta vida brotando em nosso peito e criava-se, também, uma estrada para meus piores pesadelos. Conseguiria dar banho, mamadeira ou trocar fraldas? Deixaria minha cria cair? Quando fosse buscá-lo na escola, ele teria vergonha do pai?

Em um salto generoso de tempo, aliviei a aflição da plateia (e a minha), porque a verdade é que a falta de uma mão não me impediu de realizar nenhuma das tarefas previstas para o puerpério.

Porém, um medo ainda me paralisava: o de não ser amado pelo meu filho assim que ele percebesse minha imperfeição. Como seria o dia em que ele descobrisse que o pai não era perfeito como os outros?

Eis que, como eu previ, esse dia chegou para me rasgar. Segundos de aflição, coração acelerado, manada de elefantes no meu peito. Quero a tua reação, meu filho. Mas devagar. Sei que vou sofrer. Não me machuca. Por favor.

Lembro como se fosse ontem. Brincávamos com um caminhão de madeira colorido no chão do quarto. Foi quando, pela primeira vez, meu bebê olhou para o que não via. E com a honestidade transparente de seus imensos olhos azuis, sem saber falar ainda, me questionou como quem diz “cadê?”.

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Respirei fundo e contei a verdade. O papai tem uma mão grandona e, neste bracinho, apenas 4 dedinhos que não cresceram como se esperava. Papai não tem uma mão.

Sorriu. Voltou para o caminhão de madeira colorida.

Como pulmão que volta de um afogamento, num sopro longo e sonoro de encher o peito, foi assim que recobrei a consciência. Tudo para o qual eu me preparei e parecia inevitável não aconteceu.

Entendi naquele instante que minha falta estava sendo preenchida. Aquele vazio, que era mais meu que do meu corpo, vinha sendo cicatrizado pelo amor do meu filho. 

Alguns anos depois, nasceu nosso caçula.

Para desintegrar qualquer dúvida que eu poderia nutrir sobre minha imperfeição, eis que esse novo bebezinho nunca se apegou a nenhum bicho de pelúcia, paninho ou travesseirinho. Nosso ruivo só se acalmava, só conseguia relaxar ou pegar no sono, do nascimento até há bem pouco tempo, exclusivamente fazendo carinho nos quatro dedinhos que tenho no braço direito. Um carinho que a ciência não explica.

Percebe? A paternidade estava transformando o guri assustado que escondia sua deficiência em todas as fotos; que fingia não sofrer quando o chamavam “carinhosamente” de Maneta; ou o menino que fora ridicularizado por uma professora de música que decretou sua total inabilidade para qualquer instrumento musical. Meus filhos esvaziavam a cada dia o caldeirão de incapacidades que acumulei durante a vida.

Porque uma pessoa com deficiência tem inúmeras limitações… quando acredita em tudo o que dizem para ela. 

E a paternidade veio para aniquilar com esta certeza de menos-valia.

Renascimento

E foi assim que se deu uma transfusão de energias naquele palco. A plateia e seu silêncio interrompido apenas por uma cúmplice emoção me devolvia a certeza de que eu havia me escondido por tempo demais.

Choramos todos, juntos. Lavamos a alma. Eu mais do que eles. 

E, pela primeira vez, fui aplaudido exatamente por tudo aquilo que eu fazia força para esconder.

Minhas dores e minhas faltas viraram pó diante da potência da verdade.

Você sabe quando é um caminho sem volta, entende? E eu me permiti. Renasci.

Compreenda: não há lei, crença ou doutrina que nos impeça de romper com o que nos paralisa.

Confesso, é assustador.

No dia em que temos essa clara visão do quanto podemos voar afastados das amarras autoimpostas, chega-se a perder o fôlego. Uma parada cardíaca do bem. Na volta, o orgasmo.

Após sentir na pele a leveza das possibilidades, seria estupidez seguirmos nos escondendo da vida, concorda?

Agora, “eu nasci assim” é a frase que mais me orgulha.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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