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“Eu não sou Frágil”, um conto do autor português Didier Ferreira
Pascal Bernardon | Unsplash
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Devia ter oito anos quando começou o meu isolamento. Puseram-me a alcunha de Frágil. Frágil, porque eu me escondia a toda a hora e a toda a hora me viam incapaz de enfrentar quem quer que fosse. Frágil, por ser magrinha, desengonçada. Todos os dias, a Frágil. E assim passei-me a ver diante do espelho de corpo inteiro — ridiculamente frágil.

Frágil de pernas, porque além de alta tinha-as muito magras. Frágil de braços, pela mesma razão das pernas. Frágil de constituição feminina, porque nem uns carocinhos me despontavam no peito, não tinha em mim traços de mulher para além dos cabelos. Frágil de ideias, sim, frágil, burrinha, incapaz de ter boas notas.

Queixar-me ou não me queixar?

Como os monstros existem e atacam a despropósito, fui uma das principais vítimas do escárnio e da estupidez de um grupinho de rapazes da turma, com a conivência de todos os outros e até de algumas professoras que se limitavam a dizer, com voz fraca,

— vá lá, rapazes, parem com isso,

mesmo quando eu me aproximava delas, no final da aula, queixando-me da constante provocação, ainda assim não agiam de outro modo se não dizendo,

— meninos, deixem a Sophia em paz, por favor,

e houve quem acrescentasse

— tu, Sophia, vê se te esforças mais para ser amiga deles, porque se fores boa para os rapazes, eles serão bons para ti, confia em mim.

O tempo passava e nada mudava. Eu não percebia como ser amiga deles e delas. Talvez por isso, pela minha incapacidade de socializar, habituei-me cedo a brincar sozinha, a falar de um lado e a responder do outro, a representar sozinha, a andar solitária dentro da escola e em casa. Não tinha coragem de me queixar aos meus pais. Bastavam os muitos problemas que eles tinham. A minha mãe sempre a chorar. O meu pai a chegar à casa cada vez mais tarde. Não. Não valia a pena.

Tive medo, e só piorei as coisas

— Sophia,

lembro-me perfeitamente desse dia. Paralisei de medo mal a professora pronunciou o meu nome. Levantei a cabeça. Olhei-a, receosa. E ela disse, como se lançasse um trovão na minha direção,

— lê a partir da linha vinte e sete.

— Eu, stôra?

— É a tua vez de ler. A partir dessa linha, vá.

Tremi perante a imagem de mim mesma numa exposição tão flagrante diante da turma. Gaguejei. Corei. Chorei enquanto os outros se riam. E nunca mais recuperei a vontade de estar no colégio. Se ia, era porque era obrigada. Até que o ano letivo terminou e, graças a Deus, o meu pai mudou de trabalho e nós fomos viver para Vilamoura.

Então, tudo descambou

Em Vilamoura seria por eu ser a aluna nova?

Já todos se conheciam desde os nursery. Eu vinha de outra cidade algarvia mas conservava o meu sotaque do Norte. Era a estranha chegada à turma e, não poderia ser de outro modo, se não que fosse recebida com indiferença e desprezo. E, como se não bastassem todos os defeitos físicos que afastavam dos outros, pois que ninguém queria ser amiga da feia, deu-se aquela triste cena.

A chamada da professora,

— Sophia, vem ao quadro, por favor,

despertou imediatamente a minha vergonha de estar perante os olhares dos outros. Assustei-me. Mas, pensei, era uma escola nova, não havia motivos para tanto alarmismo. Eu sabia ler e escrever muito bem. Tinha estudado a matéria. Nada me impedia de participar e, quem sabe dessa forma, ganhar alguma simpatia e admiração dos colegas. Mentalizei-me, portanto,

— Sophia?,

de que conseguiria. Enchi-me de confiança. Arrastei a cadeira para trás. Levantei-me. Caminhei na direção do quadro sem permitir que o murmurinho jocoso à minha passagem me afetasse. Não me apercebi foi do laço do atacador da sapatilha se desfazendo rapidamente, a corda tocando a ponta no chão, o outro pé pousando em cima do cordão, um tropeção seguido de outro e o meu corpo tombando desastrosamente no chão. Dei por mim, já ali estava, chorosa de dor e vergonha. Pensando bem: caí, tentei levantar-me, voltei a cair, o porque o joelho direito não mo permitia. Recordo como se fosse hoje: eu sentada no chão com as duas mãos apertando a articulação dorida.

Créditos: Morgan Basham | Unsplash

Sustinha sobre os meus ombros o peso da troça esmagando, vergando-me. Joguei as mãos às orelhas. Tapei-as como pude. Berrei um estrondoso “basta” mas julgo que o que me saiu da boca, à primeira tentativa, não foi mais do que um som estridente semelhante ao guinchar de um animal encurralado, fraco e a tremer de medo. Senti as mãos quentes da professora pousarem nos meus ombros. a voz dela pronunciando

— estás bem, Sophia?,

tão nitidamente nos meus ouvidos como os risos abafados dos meus colegas. Então, gritei, com todas as forças que me restavam,

— basta!, eu não sou frágil!

Como é que eu poderia ter imaginado, naquele meu instante de fraqueza, que a palavra “frágil” viria a ter tão grande impacto nos dois anos que se seguiriam? “Eu não sou frágil” viralizou em toda a escola. A partir daquele dia, passei a ser tratada por “Sophia, a Frágil”. A alcunha que me acompanhou até mudar de escola.


Nota da editora: A partir deste texto, apontaremos ao final da coluna os sinônimos dentro do vocabulário brasileiro para os termos destacados do português de Portugal do nosso querido escritor Didier Ferreira. Pensando em facilitar a leitura para o público do Brasil, antes fazíamos a edição com o português brasileiro. Com o tempo, percebemos que as trocas nem sempre traduziam a essência das palavras originalmente escolhidas para os textos. Então, pensamos: por que limitar nossa interpretação, se podemos – em vez disso – amplificá-la? Cronista e contista, Didier tem uma potente veia literária ficcional, e agora terá ainda mais liberdade para expressar suas raízes. Além disso, damos a oportunidade dos leitores habituados ao idioma falado no Brasil de entrar em contato com a diversidade linguística dos nossos irmãos do outro lado do Atlântico. Boa leitura a todos! 


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão:

Parvos: pessoas tolas; não muito inteligentes.

Raparigas: mulher entre a infância e a adolescência; mulher jovem.

Alcunha: nome que substitui um nome próprio; apelido.

Despropósito: aquilo que se realiza ou se diz sem propósito.

Stôra: forma de tratamento usada pelos alunos dos ensinos básico e secundário para designar os professores.

Nursery: anglicismo muito utilizado como sinônimo de creche.

Algarvia: relativo ou pertencente ao Algarve, uma região portuguesa.

Jocoso: divertido, engraçado.

Mo: contração do pronome pessoal “me” e do pronome demonstrativo “o”.

Sustinha: recuperar o equilíbrio, equilibrar-se.

Troça: zombariabrincadeira.

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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