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Desconectar é preciso
Vera_Petrunina | iStock
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Estamos hiperconectados e a tecnologia virou um braço mecânico a nos abduzir. Importante lembrar que podemos nos desconectar, e que a vida real deve ter a preferência

Vai longe o tempo em que o celular era o novo cigarro — um objeto para entreter momentos ociosos. Na espera do elevador — ou qualquer outra brecha — lá estávamos absortos, olhos fixos no visor. Contudo, agora estamos em um nível acima: o celular virou uma espécie de braço mecânico. Não é mais necessário um momento inativo ou uma desculpa para chamar a tecnologia.

Converso com um conhecido, comento sobre o trabalho de uma pessoa das minhas relações e percebo que ele volta-se para o celular. O que se passa? Ele está procurando a referida pessoa na minha página de Facebook: quer ver quem é.

Comento uma notícia com um colega de trabalho e noto que ele “ausenta-se” alguns segundos — ele está “aprofundando” o assunto no Google. Na universidade, por outro lado, todos acompanham a aula com o texto do seu laptop. Durante a explicação, o professor faz referência a outro autor. Percebo que o meu colega ao lado abre outra página. Lá está ele no site de alguma livraria pesquisando as obras do autor mencionado.

O que há de errado em todas essas situações para além da falta de respeito com o interlocutor que está mesmo à frente? Ora, em todas elas, o braço mecânico abduziu o seu usuário.

A conhecida deixou de me ouvir, o colega de trabalho desapareceu mesmo a minha frente,  o aluno perdeu a continuação da aula. Não sei se você percebeu, mas ninguém entra no celular e só faz uma coisa. A ideia é mesmo para uma única tarefa, mas chegando lá você vê uma notificação, uma ligação perdida, o alerta do banco….  

A impressão é de que todas as pessoas desse planeta, subitamente, passaram a ter déficit de atenção. Como resultado ninguém consegue mais se concentrar em uma conversa, uma aula ou qualquer outra tarefa.

A realidade do avanço tecnológico é que “vivemos melhor, mas nos sentimos pior”. Desse modo, conscientes do mal-estar, corremos de um lado para outro, em busca de um equilíbrio que nunca chega. 

Vivemos na era dos extremos em todos os sentidos. Vamos da extrema-esquerda à extrema-direita, da velocidade à serenidade, do imediatismo à contemplação, da selfie à privacidade, do natural ao artificial, do essencial ao supérfluo. Queremos todas as maravilhas da tecnologia, mas ansiamos desesperadamente por desconectar.     

Ansiamos pela vida autêntica que sentimos que nos escapa. Decidimos sair para caminhar e garantimos: vou sem celular. Quando se fala de férias ou descanso, mais importante do que o destino é a promessa: vou desconectar! É um paradoxo que nos puxa para os dois extremos. Somos sugados pelo apelo tecnológico, mas na outra ponta está o chamado da nossa essência. Ela exige tempo por nós mesmos, reivindica a existência com significado.

Por que a conectividade aprisiona? Porque é útil, facilita a vida. Exerce um fascínio enorme sobre nós e, embora tenha muito lixo, traz coisas maravilhosas, como conhecimento e informação. 

O outro apelo é a sua contemporaneidade. Apesar de críticos, somos pessoas deste tempo. Heidegger diz que somos seres históricos, nós nascemos e somos lançados numa história em andamento. Somos este e deste tempo. E ele exerce força e tem poder sobre nós. Assim, somos pressionados. Se você não está conectado, sente que não pertence a este mundo, vive o sentimento doloroso da exclusão. 

Como desmontar esse apelo? Sabendo a verdade. A ideia de que estar conectado é fazer parte ativa da sociedade é uma ilusão. Portanto, exibir fotos, opiniões, gostos e preconceitos não fazem de você integrante do clube. 

O “pertencimento” proporcionado pelas redes não é real. Quem é que diz que se você não é visto, você não é ninguém. A quem interessa essa crença? Aos anunciantes, os que querem vender produtos para você. 

Há muitos que comemoram o acesso grátis às redes sociais e alguns meses houve uma comoção mundial com a notícia de que o Facebook passaria a ser cobrado. Em seguida ficou claro: alarme falso. Todos ficaram aliviados. 

Mas atenção a uma lei importantíssima do negócio digital: quando você usa um aplicativo e não paga por ele, é porque você é o produto desse negócio. É por essa razão que a China, com conta quase 1.4 bilhão de almas, proibiu o Facebook. Com isso, o governo do gigante asiático quis deixar uma mensagem muito clara: os 1.4 bilhão de ativos pertencem a China. 

Outro ponto para reflexão: a conectividade ajuda a fugir do vazio e da tristeza porque ela facilita a comunicação. Vamos reformular essa crença: agiliza, mas não facilita. A tecnologia trouxe um novo foco de conflitos entre pais, filhos, casais e colegas de trabalho. 

E não falo só em mal-entendidos e a comunicação truncada das mensagens, mas na sua imposição. Aqui mais dois extremos inconciliáveis: liberdade e escravidão. Todos exigem que você esteja sempre disponível. 

Muitos conflitos começam com cobranças do tipo “você estava conectado, mas me ignorou”, “eu vi que você recebeu a mensagem, mas não respondeu. Aconteceu alguma coisa?”. Por que se admite essa agressão à privacidade? Porque a cultura do “estar disponível” já foi interiorizada.  

Mas talvez a principal fonte de danação da tecnologia são os efeitos sobre o tempo. Agimos como se o mundo virtual fosse uma realidade paralela, um bônus, um tempo extra. O que não é verdade. A tecnologia rouba o nosso tempo real, inclusive coloca a nossa vida em risco quando queremos negar que só há um tempo, quando, por exemplo, arriscamos a nossa vida tentando dirigir um carro e ao mesmo tempo enviar mensagens. 

O que podemos fazer? Temos que nos salvar. Desconectar é preciso. Não podemos andar feito sonâmbulos em direção ao abismo. Então, vigie… Bem como, faça voos aéreos e analise a sua vida do alto. Se você não tem o hábito de olhar para a sua própria vida, observe a dos outros. 

O papel dos outros no nosso autoconhecimento é precioso. Geralmente só descobrimos algo ruim em nós quando identificamos este “algo” ruim no outro. Por isso analise seus hábitos, reveja os seus interesses e escolhas e também questione o que está a sua volta.

Há alguns anos resolvi investir na bolsa. Vivia sozinha e um dos meus grandes prazeres do domingo era abrir a porta do apartamento, recolher o jornal que estava à porta e mergulhar no caderno de cultura. Estava tudo lá: exposições, sugestões de filme, uma aula de yoga no parque… A cidade se abria para mim.

Às vezes, não fazia nada, mas gostava de começar o dia com aquele monte de possibilidades. Depois da minha estreia como investidora, dei-me por mim, rompendo com esse hábito. Todos os domingos, abria a porta e corria para o caderno de economia. Um dia pensei: que interesse triste. Olha aí em que terreno árido estou colocando o meu coração, os meus sentidos…. Então, vendi as ações.

Além disso, esse tipo de  reflexão vale para todas as áreas da vida. É a lição maior de Sócrates “a vida que vale a pena é a vida examinada”. Repense a sua relação com o celular e tome medidas para desconectar um pouco.

A própria tecnologia comporta alguns mecanismos de não escravidão. Nas definições do aparelho você pode verificar quanto tempo esteve online por dia ou por semana. Há estatísticas mensais. É, desse modo, uma boa ferramenta para você identificar excessos.

Assim é possível passar horas de absoluta liberdade com o “modo avião” acionado. E há o maravilhoso “não incomodar”, onde você pode definir um período para desaparecer do “mundo” e desconectar. Entre às 9 e às 21 horas o meu telefone não existe. Todos os aplicativos ficam escuros. E, claro, se preciso ver algo, vou lá, mas ele insiste: suspender o “não incomodar” por quanto tempo? Mais um minuto? Mais 15 minutos?

E, óbvio, esta é a parte fácil. Difícil é administrar a cobrança dos outros, dos hiperconectados. Portanto, não fraqueje. Você não é obrigado a responder imediatamente uma mensagem. Não é obrigado a estar 24 horas contactável. A vida real em todos os seus exercícios — estudar, meditar, abstrair, relaxar, desatinar, namorar — tem a preferência. E mesmo que você não esteja fazendo nada…. você tem o direito de não fazer nada e desconectar.  

     

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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