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Cozinha para todos e todas
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As mulheres do Chef’s Table e o cozinhar como uma reconquista também do papel da mulher no mundo, onde lhe é permitido ser e estar da maneira que quiser e couber

Cresci vendo minha mãe cozinhar. O fogão, as panelas, os temperos, era território dela. Foi ela quem me apontou os caminhos para transformar os ingredientes em um prato saboroso.

Aliás, para minha mãe, a cozinha sempre foi lugar para ser. Foi a quinta filha de uma família de seis. Teve pouco contato com o pai, que morreu subitamente por conta de um derrame quando ela tinha apenas 7 anos. Foi criada pela mãe, Esther, uma mulher de poucos afetos.

Quando se casou com meu pai, ela já sabia que seu destino seria a casa. E acho que se conformava com isso – para o mundo de fora, pelo menos. Pouco tempo depois do casamento, veio a primeira filha.

E, em um período de seis anos, já era mãe de três. A prole a chamava. Ela não tinha vontade e tão pouco voz. Então, seu espaço de comando, de domínio, de ser e de se relacionar, era a cozinha.

Apesar disso ela não gostava, por exemplo, de presentes que a remetessem a esse lugar, como uma panela ou um eletrodoméstico. Era um lugar de amor, mas também de prisão. Tudo junto, ao mesmo tempo.

Quando cresci, repliquei, num primeiro momento, este mesmo comportamento e falava que eu também não queria nada que estivesse associado a cozinha. Demorei algum tempo para entender que não era sobre a cozinha, mas sobre o que ela representava para minha mãe e para tantas outras mulheres de uma mesma geração. 

Não era sobre a cozinha, tampouco sobre o cozinhar. Era sobre ser prisão, sobre não poder ser aquilo que sua alma clamava. Sobre algo que lhe era imposto. Era o que era. 

Pior, também fui me dando conta que apesar de a cozinha ser seu território, o espaço que lhe cabia, ele também era sorrateiramente lhe tirado quando isso representava voar. 

Os grandes chefs, aqueles que faziam as misturas mais engenhosas, inteligentes e criativas não eram mulheres, mas, na sua maioria, homens. Se era para brilhar, que fossem eles.

Então, na última década, ver mulheres ocupando este lugar, chegou para mim como um afago. Uma reconquista de espaço e de palavras. Talvez por isso tenha me emocionado tanto com a sexta temporada de uma das séries que mais amo quando o assunto é comida: Chef’s Table, disponível no Netflix.

A cada temporada, a história de chefs de cozinha e sua trajetória é contada com sensibilidade e poesia. Nunca é só sobre as estrelas Michelin que eles acumulam ou sobre o prato perfeito, mas sobre o caminho que percorreram, seus sentimentos, tropeços e recomeços.

Na temporada mais recente Chef’s Table, a de número seis, lançada este ano, seu criador, David Gelb, contou com orgulho que esta seria a primeira vez que ele traria metade das histórias sobre mulheres chefs – antes a supremacia era masculina.

Além disso, as histórias não poderiam ser mais potentes e emocionantes. A indiana, que hoje mora em Londres, Asma Khan, fala sobre ser a segunda filha. Na Índia, quando a segunda menina nascia era um momento de silêncio e de tristeza para a família. Khan joga luz nisso e refaz o seu caminho – e o de milhares de outras segundas filhas – pela comida e pelo afeto que ela proporciona.

Já a chef americana Mashama Bailey, da Georgia, também ressignifica seus passos – e o de tantas outras mulheres negras – ao abrir um restaurante de comida sulista, cheia de raiz, na antiga rodoviária da cidade onde nasceu e que foi, por muito tempo ao longo da história, cenário de segregação e de violência racial.

Me senti nelas, na cozinha de cada uma. Porque nunca é só sobre comida. É também sobre nosso papel no mundo, com um olhar gentil.



Ana Holanda é editora-chefe da revista Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.

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