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Cozinha é sabedoria ancestral
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Preparar um prato não tem só a ver com técnica, mas com o aprendizado que carregamos dentro da gente

Aprendi a cozinhar observando minha mãe. Eu ficava na cozinha da minha casa da infância, no canto da mesa de fórmica colorida, a olhando refogar o arroz, temperar a carne, cortar os legumes, bater um bolo. Eu ficava em silêncio sempre. Naquele tempo – estou falando da década de 70 e 80 – lugar de criança não era na cozinha. Muito pelo contrário. Se eu começasse a perguntar demais, a me aproximar demais, seria rapidamente expulsa do lugar. E eu gostava de estar ali. Não apenas para observá-la, mas porque eu adorava os aromas que saíam das panelas e sempre achei que havia uma certa magia no ato de cozinhar, na transformação do alimento. Além disso, minha mãe nunca foi muito afeita a palavras – não gostava de conversar, nem de abraçar ou beijar. Olhá-la era, para mim, minha maneira de amá-la, mesmo que a distância.

Quando cresci, comecei sozinha a me aventurar. Eu não sabia as quantidades exatas porque minha mãe, afinal, nunca me ensinou a cozinhar. Então eu puxava pela memória, pelo paladar e tentava lembrar quantas colheradas ela usava disto ou daquilo. E, quando era preciso, eu ligava e perguntava a ela como fazer o suflê ou o bolo de chocolate. E ela me falava quais ingredientes usar – muito do que ela fazia era aprendizado do dia a dia. Algumas receitas, ela registrava em caderno surrado (seu caderno de receitas), outras não – esse conhecimento oral merece respeito, porque nasce dentro dela e a acompanha.

Também aprendi a contar com as minhas próprias referências e com os sentidos que brotavam de dentro de mim: quais os sabores que me agradavam mais ou menos, qual a quantidade de açúcar que mais me satisfazia, quanto de sal era suficiente para mim, independentemente de qualquer receita. Foi assim, desse jeito, que fui me aventurando pelas panelas. Nunca deixei o medo me barrar. Se não der certo, tento de novo. Paciência. Nem tudo dá certo na vida, imagina na cozinha? É por isso que me considero uma cozinheira. Então, quando as pessoas vêm me pedir algum conselho sobre como fazer isso ou aquilo, eu dou.

Não sou nutricionista, não sou chef, nunca fiz curso de gastronomia, mas trago em mim esse ensinamento daquilo que chamo de cozinha de raiz. Não é técnica, não é precisa, mas é minha e diz muito sobre quem eu sou. Minha mãe aprendeu a cozinhar com a mãe dela. E eu com ela. É um ciclo que eu quero perpetuar. Quero que meus filhos, Clara e Lucas – eles estão com dez anos – entendam que cozinhar é parte da vida e que para fazer isso não precisam ter nada além do desejo e da vontade. O resto vem com a vida.

Cozinha é território mágico, que nos remonta a nossa ancestralidade, a nossa essência. E por isso é livre de rótulos. Na cozinha, o que impera deve ser sempre o amor. É isso. Só isso ou tudo isso. Que a gente cozinhe mais e cada vez melhor. Não pela busca do prato perfeito, mas para se encontrar. Sempre. Aliás, esse espaço que inauguro aqui é exatamente isso, um lugar de encontro sobre a comida, a cozinha, a vida.

Ana Holanda é editora-chefe da revista Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna. 

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