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Coragem para seguir sozinha
Lu Otto Lu Otto
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Quando a coragem para seguir sozinha me faltou, uma poderosa conspiração se formou e me impediu de desistir.

Na velha estação de trem de Varsóvia havia duas categorias de plataforma: as renovadas, com placas coloridas e instruções em inglês; e as antigas, onde as direções apareciam em polonês com letras apertadas em painéis preto e branco. As da primeira categoria estavam reservadas aos trens que iam para o Oeste, rumo  a cidades como Berlim, onde já no desembarque o viajante ocidental se sentiria seguro como em casa. De acordo com a minha passagem, eu deveria me apresentar nas da segunda categoria.

Comparei  as instruções em polonês e ucraniano, no verso do bilhete, com as placas na estação. E saí fazendo meu caminho pelo movimento nervoso das escadas e corredores subterrâneos da Warszawa Centralna

Crédito: Iwona Castiello Antonio | Unsplash

Mais um lance de degraus acima e… pronto! Meu ponto ficava numa longa plataforma cinzenta, de concreto, tomada por uma multidão zangada que se acotovelava carregando malas e sacolas de náilon, dessas de feira. Todos lutavam por um lugarzinho esbravejando, reclamando, conversando num idioma com o qual eu não tinha a mínima afinidade. Aquela era a área reservada aos trens de grande distância que partiam para o Leste e percorriam rotas ainda pouco estruturadas para o turismo. Eu era a única pessoa ali sem poder de comunicação e viajando até a Ucrânia por lazer e curiosidade. 

Acanhada, atrapalhando o movimento e tomando empurrões, fiz as contas: dois ou três fossos nos separavam lá daquelas plataformas novinhas, tão organizadas, tão modernamente europeias. Ponto de partida para as seguras e descomplicadas Berlim, Viena, Paris… Minha sensação de pertencimento estava no Oeste. E, mesmo assim, eu escolhia o obscuro lado contrário, aquele para onde aventureiros normalmente não optavam por irem sozinhos. 

A recusa em seguir

Sempre fui movida a medo — e ainda não descobri se isso é bom ou ruim. Quando reconheço o medo, curiosamente eu não corro na direção oposta, mas ao encontro dele. E luto até que um de nós saia vitorioso e a inquietação acabe. Às vezes, eu ganho, muitas vezes quem ganha é o medo. Daquela vez, escolhi fugir dele sem nem lutar. 

Dei as costas para a plataforma e voltei todo o caminho, abrindo espaço entre estranhos e percorrendo novamente o corredores subterrâneos, escadas e saguão, até sair aflita pela pesada porta principal da Estação Central de Varsóvia. Ao erguer o rosto para puxar fôlego e ar puro, bati os olhos no maior arranha-céu da Polônia: o Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia (Pałacu Kultury i Nauki – PKiN).

Construído quando o país vivia sob a influência da União Soviética, inspira tanto deslumbre quanto ressentimento. A Polônia o recebeu como um  “presente” da URSS, assim como outros países do bloco comunista também receberiam seus arranha-céus stalinistas. Hoje, uma brincadeira popular entre os moradores de Varsóvia insinua que o mirante do PKiN tem a “melhor vista da cidade porque é o único lugar onde o edifício não pode ser visto”. A fascinação por histórias como essa era o que me impulsionava a viajar — especialmente pelo Leste, a despeito de todas as dificuldades que uma jornada pela região, naquela época, poderia envolver. 

Conselho de pai

De um telefone público entre o Palácio e a estação, liguei para casa, no Brasil, e comuniquei a meu pai que desistiria de tudo. Estava com medo de viajar sozinha. E ele me apoiou! “Deixa pra lá então, e volta pra casa que assim é mais fácil”, disse. “Acha que eu sou boba, pai?”. Bati o gancho do telefone e entrei de volta na estação. 

Deu tempo de ouvir o apito soando enquanto eu subia novamente as escadas de acesso à plataforma do trem Varsóvia-Kiev. Tapei os ouvidos e assisti o gigante de ferro avançando lenta e vigorosamente pelo fosso. Rangia feito coisa velha que era. Engoli seco. O estômago embrulhou. 

Crédito: Marek Rucinski | Unsplash

Agora um zumbido tocava dentro da minha cabeça e meu corpo tremia. Era mesmo um trem da era soviética indo para a capital da Ucrânia. Por que mesmo eu queria insistir num país pouco habituado a turistas e que só falava línguas que eu não dominava? 

A  multidão me engoliu

Todos tentavam entrar no trem ao mesmo tempo e, uma vez lá dentro, reivindicavam qualquer lugar onde sentassem. Não havia ordem. Os passageiros se empurravam, gritavam e atiravam as sacolas nas prateleiras. Um homem de quepe e apito berrava comigo em russo — ou seria ucraniano? —  apontando impaciente para minha passagem e bolsa. Eu não conseguia pensar direito. Tinha a mente turva. Não entendia os gritos, os gestos e nem os números impressos no bilhete e nas poltronas. Se houvesse um lugar para mim ali, já estaria tomado. Então veio o som das portas dos vagões se fechando. Blam! Uma a uma. Blam!

Logo seria a vez da porta do meu vagão e aí o trem partiria comigo lá dentro. “Não quero!” Corri para a porta e iniciei a descida pela escadinha de ferro. Aquela história de viajante solitária e corajosa fora apenas uma mentira que contei por muito tempo — e terminava agora.

Ajuda inesperada

Nunca cheguei a pisar no chão da plataforma. Em vez disso, uma força me sugou de volta para dentro do trem. A porta se fechou. Blam! Ouvi o ferrolho. O trem iniciou seu deslize. Arrastada em marcha à ré vagão adentro, entregue ao destino e sem chance de reação, fui socada numa grande cabine vazia com dois sofás-cama. Olha, até que nada mal… Pude então ver o rosto da mulher de cabelos pretos longos, minha algoz. Ela me soltou e correu para fora da cabine. Bateu a porta e me trancou lá dentro! 

Do lado de fora, meteu-se numa conversa apoquentada com o funcionário do trem. Deu um último grito (acho que foi mais para um tipo de ordem) e entrou na cabine.  Ajeitou-se com pressa e ansiedade, tomou fôlego e se apresentou.: “Sou Valentina. Você está segura agora”. O doce inglês com sotaque estrangeiro de Valentina me acalmou naquele mesmo instante e pelas próximas 20 horas de viagem até Kiev. Sentamos uma de frente para a outra, cada uma num sofá. 

A viagem de trem

Durante o trajeto, Valentina dividiu comigo melancia, pão doce, iogurte e linguiça tirados de um farnel que parecia não ter fundo. Emprestou xale e travesseiro quando me deitei vencida pelo cansaço. Fez a tradutora quando passaram o bilheteiro e os guardas de fronteira: E também da moça do chá, que nos abastecia de bebida quente em copos de vidro com elegantes suportes de metal trabalhado. Notava-se que os suportes eram antigos. Quando notei que a base de um deles ainda levava a marca de uma foice e um martelo, Valentina e a moça do chá disseram repentinamente:  “Soviet times”!

Conversamos sobre família — ela me mostrou algumas fotos — e a coragem de sair pelo mundo fazendo escolhas solitárias que dão medo. Ela me ensinou como agir na Ucrânia e a como encarar as primeiras dificuldades de comunicação e cultura quando pisasse em Kiev. Valentina foi uma ucraniana que notou minha aflição de longe, desde a chegada na estação. Compadecida, me ofereceu um lugar em sua cabine exclusiva e convenceu o guarda do trem de que esse era o melhor jeito de se tratar uma estrangeira assustada, perdida e com a poltrona tomada. 

Nos despedimos para sempre — e sem trocar contatos — pela janela de um táxi. Valentina deu três tapas no teto do carro e o motorista partiu em direção ao conjunto de apartamentos-colméia onde estudantes estrangeiros — especialmente chineses — se hospedavam na cidade. Por um mês, consegui explorar a Ucrânia sozinha.
Como eu já disse, é encarando o medo que termino por vencê-lo e me torno a mais… valente! Algo me diz que dessa vez, o sucesso da missão teve a misteriosa mão de uma amiga.  Valentina foi mais um anjo no meu caminho.


JULIANA REIS é uma viajante em busca de histórias, pessoas, lugares e experiências que a modifiquem.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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