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Contornando o medo da rejeição
SI Photography (IStock)
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Para viver uma vida autêntica, é necessário saber lidar com o cérebro que nos habita.

No carnaval de 2020, o tribunal de internautas cancelou uma atriz acusada de apropriação cultural por desfilar no carnaval vestida como índia. Enquanto a foto da artista carimbada com a sentença “cancelada” era viralizada na internet, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil emitia nota defendendo a atriz. Acontece que ela é ativista do movimento indígena, e usou o carnaval para dar visibilidade à causa. Independente da sua opinião, fato é que nos sentimos autorizados a julgar, e agora penalizar aqueles que discordam de nossas verdades. O cancelamento é a pena imposta à pessoa que teve uma atitude ou discurso infeliz. As leis são postas pela subjetividade daqueles que julgam. O transgressor é humilhado publicamente, enquanto as pessoas deixam de segui-lo. É um ataque direto à reputação, e o sentenciado perde voz, atenção, e posição social.

A palavra cancelamento gera nada menos que 33 milhões de resultados na busca do Google. Este fenômeno, que começou na internet há menos de 4 anos, é hoje para alguns, parte da cultura. É que o cancelamento é um poderoso influenciador de comportamentos. E isso acontece porque ele se sustenta sobre um dos nossos medos mais viscerais. O medo da rejeição. E é sobre isso que eu quero falar.

Para cada necessidade, uma dor

Todos desejamos ter status. Essa é a conclusão de um estudo recente da Universidade de Berkeley que reviu mais de 70 anos de pesquisa a respeito do assunto. Status é sobre ter respeito, admiração e valor social. Bem antes deste estudo, em 1943, Abraham Maslow colocou o status entre uma das nossas cinco motivações básicas. Segundo o psicólogo, temos o “desejo inato por reputação, prestígio, reconhecimento, atenção, importância e apreço”. Psicólogos evolucionistas explicam que o desejo por status é inato porque ele confere vantagens evolutivas. Ao longo dos milhões de anos da evolução da espécie, aqueles que tiveram mais prestígio ganharam mais favores, respeito e colaboração. Conseguiram atrair mais recursos e melhores parceiros e, por isso, propagaram genes com mais sucesso. Quando somos bem vistos, temos mais chances de uma vida longa e farta. Sozinhos somos vulneráveis. Por isso desenvolvemos, explicam os evolucionistas, mecanismos neurofisiológicos que monitoram nossa posição social.

Um deles é a dor. Mathew Lieberman, neurocientista da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, demonstrou que o nosso cérebro processa a dor emocional relacionado às perdas sociais de maneira similar à dor física. Tanto que o uso contínuo de Tylenol foi suficiente para que voluntários não sentissem a dor da rejeição em um dos experimentos conduzidos em seu laboratório. O pesquisador explica que o desconforto direciona a nossa atenção para tarefas importantes para a nossa sobrevivência. A fome nos motiva a comer, o sono a dormir. A dor da rejeição nos motiva a restaurar a nossa inclusão no grupo, ou buscar outro grupo para pertencer.

medo da rejeição

Cristian Newman (Unsplash)

A dor da rejeição é real e influencia inclusive o julgamento que fazemos sobre nós. Mark Baldwin realizou um estudo em que mostrou para voluntários rostos de repreensão projetados em uma tela. As imagens foram projetadas por apenas dois milissegundos, de forma tão rápida que era impossível que os voluntários soubessem que tinham visto estes rostos. Em seguida, os pesquisadores pediram que os voluntários se autoavaliassem. Aqueles que viram os rostos de repreensão, foram mais duros consigo. Segundo Baumeister, a nossa autoestima é um termômetro que mede o nosso valor social. Quando percebemos ou imaginamos que os outros nos julgarão negativamente, nos sentimos mal ao nosso respeito. Para ele, a função evolutiva da baixa autoestima é motivar mudanças que aumentem nosso valor social. E conforme demonstra o estudo de Baldwin, isso acontece inclusive abaixo do nosso limiar de consciência. Ou seja, quando o assunto é a opinião alheia, importar-se não é opcional.

Só porque você sente, não quer dizer que seja verdade

Enquanto vivíamos em pequenas tribos, a rejeição era um risco de vida. Mas hoje, nos relacionamos com muitas pessoas, poucas de fato são relevantes para a nossa sobrevivência. Estamos carecas de saber que o nosso pânico da rejeição social é pouco racional. Prova disso é que aconselhamos pessoas queridas a deixarem de se importar. Se uma amiga é assombrada pelo fantasma da rejeição, lembramos que a opinião do outro diz mais sobre o outro do que sobre ela. Contamos para nossa amiga que as pessoas a diminuem, para sentirem-se melhor comparativamente. Quando é a amiga quem sofre, lembramos que é impossível agradar a todos. E que as críticas surgirão independente das escolhas que ela faça. Aconselhamos que ela se importe com a opinião de poucas pessoas. E que escolha escutar quem a ama de verdade.

Mas quando os rejeitados somos nós, a racionalidade nos escapa. Achamos que, porque sofremos, algo está errado. Como se as nossas emoções fossem resultado de uma ponderação racional. E é aí que nos enganamos. Nem sempre ponderamos e depois sentimos. Pelo contrário, muitas vezes sentimos e depois buscamos uma razão que justifique nossas emoções. Acontece que muitas vezes a dor nem tem a ver com o presente. Quem já foi mordido por um cachorro bravo sabe que aquilo que sente cada vez que se depara com um novo canino é o medo do passado que se renova. Às vezes, nosso sofrimento corresponde a medos mais antigos do que a nossa própria existência. Muitos dos nossos medos e motivações são herdados, estão inscritos no nosso DNA porque, em algum tempo, favoreceram a evolução da espécie humana. Há 35,000 anos temos o mesmo cérebro. Muitas vezes, o que nos ajudou a sobreviver no passado, não nos ajuda mais.

medo de rejeição

Foto Gestoeber (IStock)

Acontece que temos um eu ou self justificador, que não aceita ser surpreendido. Robert Wright, psicólogo evolucionista, diz que estamos o tempo inteiro justificando decisões e emoções que são automáticas e que acontecem a priori. Tentamos nos convencer que o que sentimos faz sentido, e fazemos isso sem perceber. Funciona assim, frente a rejeição, real ou imaginária, acionamos um comando inscrito na nossa neurofisiologia: “julgar-se negativamente e sentir dor”. Isso acontece de forma rápida e automática. Em um segundo momento, nos damos conta do sofrimento. E, então, em um terceiro momento procuramos uma razão que explique a presença e intensidade da nossa dor. Quando a dor é intensa, a explicação é igualmente trágica “nunca mais serei bem-vinda entre as amigas”. Mas não percebemos que a nossa explicação é uma justificativa fantasiosa para uma dor que se instalou sem a nossa autorização. Então sofremos ainda mais, porque acreditamos nas nossas justificativas. Ou seja, o sofrimento gera um pensamento ou preocupação que traz mais sofrimento. É o looping da ruminação.

Como usar o seu cérebro

Quando as nossas ações são motivadas pelo medo da exclusão, priorizamos a conformidade em vez da autenticidade. Por exemplo, para evitarmos o cancelamento, agimos como quem pisa em ovos, com medo de despertar a ira daqueles que não podem ser contrariados. Há até quem concorde com o que discorda, por medo da retaliação. Os diálogos ficam tão empobrecidos quanto seus agentes. Fazemos parte do bando, mas não conseguimos nos encontrar. E isso é um problema porque uma das premissas para o nosso bem-estar é a autenticidade e a autonomia. Precisamos sentir que agimos conforme nossos valores e não conforme as imposições sociais. Sermos quem somos também é condição para que encontremos aqueles que nos respeitam e apreciam de fato. Chance que perdemos no instante que começamos a seguir a receita alheia para a nossa vida.

É necessário tolerar o desconforto da rejeição, real ou imaginária, para sermos quem somos. Ajudaria se conseguíssemos nos lembrar dos conselhos sábios que oferecemos quando quem sofre é o amigo. Quando o sofrimento não acontece na nossa pele, ou neste caso, no nosso cérebro, conseguimos raciocinar com clareza. Dada a conexão íntima entre emoções e pensamentos, a ponderação racional que pode nos ajudar só é possível quando nos acalmamos primeiro. E para isso podemos usar outras programações neurofisiológicas. Por exemplo, somos programados para sentir segurança a partir do acolhimento, do apoio, e do toque. E podemos fazer isso por nós mesmos, acolhendo nosso sofrimento com autocompaixão. A autocompaixão nos permite sair do sistema de alarme e olhar para as nossas dificuldades a partir de uma perspectiva mais ampla. A partir daí fica mais fácil ser sábio e gentil consigo mesmo, apoiando-se como seu melhor amigo.


Adriana Drulla é Mestre em Psicologia Positiva pela Universidade da Pennsylvania (EUA) e pós graduada em Terapia Focada em Compaixão pela Universidade de Derby (Inglaterra), onde teve como mentores Martin Seligman, psicólogo fundador da psicologia positiva, e Paul Gilbert, psicólogo criador da Terapia Focada em Compaixão. Semanalmente fala sobre psicologia e mente compassiva no podcast Crescer Humano.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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