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Comida é reencontro
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A comida, os aromas, os pratos têm a capacidade de nos levar para dentro da gente mesma, de ajustar o sentido da nossa caminhada

Há meses não cozinhava. Muitos meses mesmo. Achei até que tinha perdido a mão. Mas, neste novembro, meu filho Lucas insistiu muito para que eu fizesse uma lasanha – um dos meus pratos que ele mais ama. Cedi. Fui. Comprei os ingredientes. Molho de tomate, carne moída, tempo para apurar, para ganhar sabor. Montagem. Massa, molho, queijo, carne. E tudo se repete nessa sequencia até estar pronta e ir para o forno. Enquanto preparo, sinto os aromas, os cheiros que me são tão familiares, o da cozinha, do alimento sendo preparado, apurado.

Comecei a cozinhar junto com a chegada de Clara e Lucas, meus filhos gêmeos, há quase 11 anos. Conforme eles foram crescendo e reconhecendo cheiros e sabores, meus instintos me levaram para a cozinha. E estar neste espaço foi, para mim, um reencontro. Naquele momento, de maternidade recente, foi um visitar a minha infância. Lembrei dos aromas que saiam da cozinha da casa da minha tia Lybia, em Recife: da carne refogada, do queijo de coalho, do suco de caju, do doce de abacaxi. Fui também levada para o quintal da casa dela, para a sua paixão pelas plantas, para o seu olhar delicado e suave para as flores e para as pessoas. Junto com ela, vieram as recordações da minha avó Esther, do seu jeito duro, seus poucos afetos, mas sua também paixão pelas plantas, suas companheiras de confidencias profundas. Da vida dura, dos amores desfeitos, dos filhos perdidos, levados precocemente. Por fim, o refogar da carne, me remeteu a minha mãe, Ligia. Seu modo de amar atravessado pelos sonhos não realizados. Foi por meio dos aromas, que saiam da minha casa da infância, que aprendi a me relacionar com a minha mãe. Quando o cheiro era de algo queimando, melhor nem se aproximar. Quando era doce, caminho aberto para o estar junto.

A comida feita em casa, o colher a fruta no pé, o preparo, o tempo de espera. Tudo isso norteou meus primeiros anos de vida, minha infância e adolescência, até o momento em que precisei deixar o ninho e seguir vida afora, sozinha, mas levando minha tia Lybia, minha avó Esther e minha mãe Ligia comigo. Então, quando eu me tornei ninho, quando Clara e Lucas chegaram em minha vida, a vontade de virar lembrança também pela comida, pelos aromas, se fez presente. Foi assim que comecei a cozinhar. Mas, claro, com o tempo – ou a falta dele – a gente também se perde. E foi esse pequeno desvio de mim mesma que vivenciei nos últimos tempos.

Talvez Lucas não faça ideia, mas quando insistiu para que eu cozinhasse, ele me ajudou a encontrar as migalhas jogadas pelo caminho que me levam de volta a mim mesma. Na minha cozinha, no preparo da lasanha, me reencontrei com a criança que fui, com a adolescente cheia de sonhos, com a mulher repleta de vontades, desejos e força. E comigo estavam, novamente, Lybia, Esther e Ligia. E isso me deu a certeza de que a gente nunca está só. Não há como se perder. Não há.

Nas semanas seguintes, além da lasanha, fiz bolo, pudim, carne refogada e mais uma porção de outros pratos que fazem tão parte do meu repertório – e da minha história. Clara, minha filha, comentou, depois de um pudim preparado após meses sem um doce sair daquela cozinha: “mãe, você poderia fazer novamente esse pudim? Mas poderia não demorar tanto tempo…” . Garanti a ela que sim, que eu não me demoraria tanto. Os cheiros, os sabores, o cozinhar, afinal, sempre me levarão de volta para minha casa, de volta para mim mesma. Que nunca mais eu me demore tanto para me reencontrar.



Ana Holanda é editora-chefe da revista Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.

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