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Cicatrizes valem ouro?
Marco Montalti | IStock Crédito: Marco Montalti | Unsplash
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Neste artigo:

Resiliência: a arte de crescer por causa, e apesar, dos desafios

Quando o assunto é resiliência, gosto de começar com uma lenda japonesa. Ashikaga Yoshimasa, xogum que viveu no século XV, adorava uma tigela de chá que trouxe da China. Quando a tigela quebrou, o xogum enviou os cacos para reparo na cidade onde havia comprado o objeto. Ao receber a tigela de volta, ficou decepcionado com o remendo – tinha sido feito com grampos de metal mal-acabados. Então, pediu aos artesãos locais que achassem uma solução à altura de sua peça.

A beleza da lenda está na solução encontrada. Imagine que a cerâmica inicia a sua vida como uma peça comum, igual a tantas outras. Em certo momento ela ganha um dono e possivelmente um significado. Com o tempo, o objeto sofre desgastes, tombos. Eventualmente, uma queda mais brusca o despedaça. Na queda, a peça perde sua identidade e função. E é quando ela poderia ser jogada no lixo, que o artesão começa o seu trabalho. Os cacos são recolhidos e tratados.

Colar os pedaços

O artesão reencontra o sentido da peça à medida que decifra o lugar de cada caco. Para colar os pedaços, ele usa uma mistura de resina com ouro em pó. As cicatrizes de ouro passam a contar a história que é única de cada peça. Duas tigelas nunca quebram ou são restauradas do mesmo jeito. A cerâmica renasce e se torna extraordinária, resistente e muito mais valiosa. A técnica foi batizada de Kintsugi, e até hoje é utilizada no Japão.

A lenda japonesa é comovente, apesar de pouco original. É isso que nos ensina o mitólogo Joseph Campbell, que chamou de mito do herói a trama que sustenta inúmeras narrativas humanas, desde os tempos mais remotos. Embora o protagonista ganhe nomes diferentes — tigela do Xogum, Rei Artur e Luke Skywalker são alguns exemplos – o mito do herói, segundo Campbell, é basicamente assim: o sujeito sente a necessidade de partir do conforto de sua casa para uma jornada importante por terras estranhas. Ele precisa enfrentar seus medos e resistências, inimigos e armadilhas.

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Crédito: Happycity21 | Istock

Em certo momento, encontra um mentor que lhe ajuda transcender suas limitações. No momento crucial da história, o sujeito enfrenta um desafio mortal do qual sai transformado e engrandecido. O sujeito se transforma em herói e, frequentemente, ganha um prêmio – como a espada ou cicatrizes de ouro. Voltando para casa, ele transforma o mundo de onde veio com suas habilidades e aprendizados.

A hipótese da antifragilidade humana

Quando algo difícil nos acontece, é natural que fiquemos deprimidos, irritados, desatentos ou ansiosos. No entanto, diferentes estudos mostram que a maioria das pessoas – as porcentagens variam – que passam por eventos traumáticos, eventualmente apresentam alguma forma de crescimento. Tanto que estudiosos vêm levantando a hipótese de que o estresse é necessário para nossa evolução.

Da mesma forma que nosso sistema imune precisa primeiro ser exposto ao agente infeccioso para então aprender a nos defender, a nossa capacidade de enfrentar dificuldades precisa ser exercitada. Temos potencial para enfrentar os mais variados desafios, mas sem exposição essa potencialidade não se transforma em capacidade. Neste sentido, somos mais que resilientes. Objetos resilientes permanecem inalterados após a queda. Seres humanos se beneficiam com a queda. Somos antifrágeis.

E se as lições da mitologia não forem suficientes para te convencer sobre os benefícios das adversidades, você pode consultar a ciência também. O termo crescimento pós-traumático foi introduzido na psicologia em 1996 por Calhoun e Tedeschi. É um termo “guarda-chuva”, que se refere às transformações positivas que acontecem precisamente porque passamos por eventos difíceis. E embora pessoas diferentes aprendam lições diferentes com eventos diferentes, os trabalhos no campo costumam encontrar benefícios bastante comuns e que podem ser agrupados em três grandes categorias.

Aprofundamos vínculos importantes

O que seria da tigela do xogum sem o artesão, de Rei Artur sem Merlin, e de Luke Skywalker sem Kenobi? O processo de sofrimento naturalmente nos leva ao outro. A presença do outro nos dá segurança, sabemos que não estamos sozinhos e que podemos contar com alguém. A função da tristeza, por exemplo, é sinalizar para o outro que precisamos de ajuda. E bem sabemos que não é qualquer outro que surge para nos ajudar. Frequentemente, a adversidade funciona como um filtro. Algumas amizades se desfazem, enquanto outros vínculos se tornam mais importantes. Em momentos difíceis, abrimos nossos corações para as pessoas que confiamos e que ficam ao nosso lado. Desenvolvemos gratidão e amor por quem realmente importa.

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Crédito: Riho Kitagawa | Unsplash

As pesquisas mostram que este aprofundamento das relações promove a resiliência. Por exemplo, o sociologista Glenn Elder constatou que pessoas com laços sociais mais profundos superaram melhor as vivências trágicas da Segunda Grande Guerra. Ter um ou dois vínculos importantes nos ajuda a enfrentar adversidades. Uma das explicações está nos estudos do psicólogo James Pennebaker. Estudando os efeitos do trauma sobre a saúde física, o psicólogo descobriu que os eventos que mais nos afetam nem sempre são os que consideramos mais graves.

Afetam-nos aqueles eventos sobre os quais não conseguimos falar. A capacidade de superar traumas está relacionada à construção de sentido. Precisamos entender o que nos acontece. Em suas pesquisas, pessoas que falaram sobre o evento traumático com amigos ou grupos de apoio tornaram-se fisicamente mais saudáveis do que as pessoas que permaneceram caladas, meses após o trauma. Ter alguém com quem conversar é importante para entendermos as dificuldades por uma perspectiva mais ampla, aprofundar e ampliar compreensões. Neste sentido, a escrita ajuda também.

Saímos do piloto automático.

O piloto automático humano tem três direções: reconhecimento social, vitória na competição e acúmulo de recursos materiais. Temos uma história evolutiva que beneficiou aqueles com seguidores e recursos. Por isso, a evolução da espécie selecionou programações cerebrais que automatizaram a comparação com o outro, a adaptação ao que temos de bom, e a busca pelo que ainda não temos. Os cientistas comparam nosso funcionamento automático à corrida em uma esteira hedônica. Corremos, cansamos, mas em termos de felicidade, não saímos do lugar.

Até que algo inesperado acontece. Você cai da esteira. No chão, você precisa entender o que te aconteceu e cuidar das suas feridas para que então possa se movimentar novamente. Assim como a tigela do Xogum, muitas vezes perdemos funções, forma e até a nossa identidade com a queda. Sentimos que estamos perdidos e é por isso que temos a oportunidade de reavaliar a nossa rota. Questionar nosso direcionamento é a única forma de evitar a sina da insatisfação eterna. E, na literatura científica, é este um dos presentes da adversidade.

As adversidades

Claro que poderíamos fazer do questionamento um hábito. Mas, normalmente, não há tempo ou disponibilidade emocional para ajustes quando tudo parece bem. A adversidade é impiedosa, não deixa escolha. Precisamos refletir sobre onde queremos chegar. Os estudos mostram que, por um curto espaço de tempo, ficamos aptos a abandonar metas típicas do piloto automático. Trocamos objetivos ancorados nas nossas inseguranças por outros que trazem significado para a vida.

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Simone Pellegrini | Unsplash

Muitas pessoas decidem trabalhar menos, dar menos valor para a opinião do outro, perseguir um sonho profissional ou mudança de carreira, aproveitar mais os relacionamentos e a família. A adversidade nos aproxima daquilo que tem valor intrínseco, do nosso norte verdadeiro. Ela traz coerência entre as nossas metas e valores. Mas atenção, analisando a literatura em crescimento pós-traumático, o psicólogo Jonathan Haidt diz que, se nesses primeiros meses você de fato agir para mudar a sua vida cotidiana, as mudanças podem persistir. Mas se o máximo que você fizer for adotar uma resolução – “preciso dar mais importância à minha família” – logo voltará aos velhos hábitos, subindo na esteira outra vez.

O que não te mata, te faz um sobrevivente

Nove anos após ser baleada na cabeça, Malala se tornou referência mundial para a causa da educação feminina e a mais jovem ganhadora do Prêmio Nóbel da Paz. Malala conta que sobreviver à tentativa de assassinato foi como receber o presente da vida pela segunda vez. “Eu disse para mim mesma, Malala, você já encarou a morte. Esta é sua segunda vida. Não tenha medo. Se você tiver medo, não conseguirá seguir em frente.” A adversidade fez Malala mais forte para lutar por sua causa.

Os estudos sobre resiliência e crescimento pós-traumático mostram que frequentemente há algo de bom misturado ao mau. Quando você sobrevive a perda de um filho, ente querido, ou doença importante, coisas que antes te assustavam passam a ser menos relevantes. Pessoas que passam por adversidades se espantam com o que são capazes de sobreviver e tolerar. O sentimento de capacidade é incorporado ao autoconceito. Elas ficam mais confiantes para enfrentar futuros problemas e se recuperam mais rapidamente dos desafios que encontram.

Ressignificamos

Mas a possibilidade de existir algo bom misturado ao mau não significa que o mau não exista ou que não deva ser nomeado, prevenido e combatido. O estresse para o qual não temos recursos para superar, por exemplo, resultante da negligência, abuso ou violência na infância, interfere no desenvolvimento cerebral e prejudica permanentemente a saúde física e emocional. São cicatrizes suturadas com grampos mal-acabados, que diminuem nosso potencial. É comum carregarmos suturas mal-acabadas até das adversidades que já ressignificamos. Na biografia de Malala, por exemplo, ela conta que até aquele momento ainda tinha flashbacks, ocasiões de pânico em que era assombrada por traumas do passado.

A lição dos mitos — e dos trabalhos em crescimento pós-traumático — talvez esteja na possibilidade de ampliarmos a nossa existência para além dos remendos malfeitos. Aprofundando vínculos importantes e falando sobre a nossa história temos a chance de encontrar laços verdadeiros, propósitos importantes, e encontrar um norte mais coerente com o que importa. Algumas feridas conseguimos suturar com ouro. Para outras, grampos mal-acabados já são uma grande vitória. Cicatrizes diferentes podem coexistir.


Adriana Drulla é Mestre em Psicologia Positiva pela Universidade da Pennsylvania (EUA) e pós graduada em Terapia Focada em Compaixão pela Universidade de Derby (Inglaterra), onde teve como mentores Martin Seligman, psicólogo fundador da psicologia positiva, e Paul Gilbert, psicólogo criador da Terapia Focada em Compaixão. Semanalmente fala sobre psicologia e mente compassiva no podcast Crescer Humano.

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