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As rolinhas
Joe Caione
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Cheguei em casa cansado. Só queria relaxar um pouco em frente à TV, zapeando ou assistindo a algo muito leve, como um filme da Sessão da Tarde. Tive sorte. Estava passando Esqueceram de mim 2, aquela comédia ingênua dos anos 90, com o então garoto Macaulay Culkin, e eu me dei conta de que era exatamente esse filme que eu queria rever. Sem compromisso.

Mas o filme não é só engraçado, tem também um lado tocante que faz pensar. Na cena da visita à loja de brinquedos, Kevin ganha do dono, o Sr. Duncan, duas rolinhas que enfeitavam a árvore de Natal, por ter doado 20 dólares para o hospital infantil. Junto com o par de passarinhos de asas abertas, o bondoso senhor lhe recomenda que, quando quiser manter para sempre a amizade de alguém, dê a essa pessoa uma das rolinhas, e conserve a outra. Enquanto ambos as mantiverem, a amizade perdurará.

Gosto bastante de símbolos. Principalmente quando são sobre o amor, a amizade, a alegria ou a esperança, os sentimentos positivos. Aliás, o homem é um animal de símbolos. Precisamos deles. Não foi por acaso que o último livro de Jung, o único destinado ao público em geral, chama-se, exatamente, O Homem e Seus Símbolos, em que ele explora principalmente o simbolismo contido nos sonhos, e diz que “quando a mente explora um símbolo é conduzida a ideias que estão fora do alcance da razão”. Realmente, os símbolos têm poder, e as tais rolinhas do filme são um símbolo e tanto.

Encontros da vida

Na cena final da película, Kevin, em plena noite de Natal, deixa o conforto quentinho do hotel Plaza, onde finalmente reencontrou a família, e corre para o frio Central Park, onde sabe que encontrará a mulher dos pombos, um ser solitário que tem nas aves do parque e na música do Carnegie Hall a razão de sua existência. Em uma cena hilária, perseguido pelos “bandidos molhados”, Kevin é salvo pela senhora, de quem se torna amigo e confidente. Eles sabem que nunca mais se encontrarão, mas estão certos de que serão amigos para sempre. As rolinhas vão garantir essa união.

Terminado o filme, fiquei pensando sobre as rolinhas. Não as rolinhas de enfeite de Natal, muito menos as aves columbiformes tão comuns em nossos céus. Meu pensamento se voltou para as rolinhas metafóricas que tive a oportunidade de compartilhar na vida, e também aquelas que, distraído, negligenciei. A lista de “amigos fortuitos” é imensa. Alguns, surgidos no nada, viraram amigos presentes, como o suíço Didier, que é quase um irmão. Com outros a amizade agradável continua a distância, como a Esther e o Mikael, o casal belga que conhecemos em uma pousada da Borgonha, e que vemos raramente. São, ao mesmo tempo, distantes e próximos. O que nos une é a lembrança daquele encontro, e a imensa quantidade de coincidências filosóficas que fomos descobrindo com o tempo.

Outros nunca mais vi, e acho que jamais verei. Como o professor americano sentado ao meu lado em uma viagem entre São Paulo e Belém, que, quando percebeu que eu lia um livro do escritor e bioquímico Isaac Asimov, puxou conversa e transformou aquela viagem em uma jornada excitante pelas maravilhas da literatura. Esse episódio rendeu até texto. Lembro dele com admiração e carinho, apesar de não saber nem mesmo seu nome.

Rolinhas distribuídas

Acho que todos somos distribuidores de rolinhas pela vida, ainda que a competência para fazer isso nem sempre seja explorada pelas pessoas. Algumas até preferem distribuir corvos, daqueles que arrancam olhos. Que pena…

Minha crença é de que não devemos perder nenhuma oportunidade de fazer mais um amigo. É claro que serão muito variadas as intensidades entre as amizades que fazemos ao longo da vida, mas isso não importa. É muito gostosa a sensação de saber que existe alguém que lembra de você com um sentimento bom, ainda que fugaz.

Li recentemente o resultado de um estudo da Universidade de Brigham Young, nos EUA, que mostra a relação entre a capacidade de fazer amigos e a longevidade. Não só os indicadores da saúde são melhores entre os que cultivam amizades como a recuperação de possíveis enfermidades é mais rápida e segura. Ou seja, até por uma questão de saúde, é melhor distribuir rolinhas do que corvos. E a novidade boa é que essa qualidade está mais ligada ao hábito do que ao temperamento. Há pessoas sisudas que cultivam uma grande capacidade de fazer amigos, enquanto alegres grandiloquentes não dominam a arte. Não, não se trata de ser simpático, alegre nem atraente. Estamos falando de uma rolinha, ou seja, de uma lembrança positiva.

Quantas ideias, em forma de sentimentos ou de análises lógicas foram exploradas neste espaço ao longo destes 15 anos de existência? Quantas vezes, ao desenvolver um tema – e foram muitos – este colunista usou símbolos de vários matizes e intensidades para chegar ao pensamento através da emoção, ou ao contrário? Na verdade, qual foi o caminho não importa. O que vale mesmo é que muitas rolinhas foram distribuídas, e amizades foram construídas entre pessoas que jamais se encontrarão.

Nossa capacidade de ser humano

Recentemente, ao chegar a Curitiba para uma reunião e, tendo algum tempo, parei no caminho para um café em uma simpática padaria. Mal sentei, uma elegante curitibana que, por acaso, se levantava de uma mesa próxima, ao passar por mim, perguntou se eu era quem era. Quando disse que sim, recebi o presente do dia. Ela lia meus textos todos os meses, e afirmou que eles não só lhe davam prazer mas a ajudavam a pensar sobre os fatos do cotidiano a partir de uma nova perspectiva. Não nos conhecíamos, mas estamos conectados pelas ideias. Pode haver rolinha mais bela?

Tomado pela surpresa, não fui cavalheiro como deveria. Não perguntei sobre ela, nem para onde poderia mandar-lhe um livro como agradecimento por sua gentileza. Perdoe-me, amiga. Quem sabe ainda dá tempo…

Não importa se a rolinha é um texto, um livro, uma gentileza, uma palavra certa, um favor oportuno, um presente físico, um elogio ou mesmo uma crítica necessária. O que importa é que algo dessa natureza simboliza e representa a capacidade que temos de ser humanos, em nossa melhor versão.

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