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“Alguém para estar comigo de verdade”, um conto de Didier Ferreira
Jorge Vasconez | Unsplash
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Saí de casa confiante. Sem pensar devidamente no que fazia. Tirei a mochila do armário, enchi-a de roupa, o suficiente para dois dias e uma noite, o livro — cuja leitura intermitente já não me apazigua o suficiente —, escova e pasta de dentes, um rolo de papel higiénico, o desodorizante, a carteira com dinheiro. Assim saí de casa sem um plano, sem horas marcadas para a camioneta, para o hotel, pensão ou hostel em que ficasse. Simplesmente saí de casa, de Almada para Lisboa, de Lisboa para o Algarve.

Faço o caminho para esquecer. Para me afastar da presença dela. A relação, com o tempo, tornou-se tóxica. Discutimos por tudo. Desencontramo-nos no tempo. Dou por mim a sair do trabalho e a procurar pretextos para não seguir para casa. Paro num café. Tomo a bebida que lhe dá o nome. Abro um livro. Este que nunca mais acabo ocupa-me por pouco tempo. Folheio as páginas distante de mim mesmo, com o pensamento vago, por aí, vejo-me por aí cirandando, cabisbaixo, maldizendo a vida e a maldita opção do passado. Vejo-me outro. Diferente. Um novo eu aqui sentado. De rosto encostado ao vidro. E o asfalto correndo rápido bem ao meu lado faz-me enxergar a pressa com que nos agarramos. Nunca chegamos a ser amigos. Saltamos logo para namorados.

Bagagens que não me pertencem

A caminho do Algarve, repenso a nossa história desde o princípio. Parecem-me nítidos os receios que ela transportara para a nossa história, mal começada ainda, de outras vidas, com outras pessoas, outros atos. Agora, as riscas brancas na estrada escrevem-me a versão correta da história. “Não quero na minha vida pessoas que desaparecem”, disse-me ela, logo na primeira semana, no terceiro dia após nos conhecermos. Disse-o, porque eu deixara de lhe responder às mensagens quando estava numa festa com amigos. Recuso-me ainda hoje a manter conversas paralelas por telemóvel se estou acompanhado. A minha atenção é dada primeiramente a quem está comigo presencialmente, pessoa conhecida ou desconhecida. Mas, por muito que eu lhe explicasse esta minha forma de escapar ao apego do telemóvel, uma e outra vez ela cobrou-me “mais atenção, é que eu sei bem o que não quero na minha vida, já passei por isso, pelo abandono, agora só quero do meu lado pessoas que queiram estar comigo de verdade”.

Por três vezes ela acusou-me de a abandonar. Três vezes na primeira semana. Muitas mais nas que se seguiram. Bastavam-me algumas horas sem lhe responder às mensagens ou interromper uma conversa por essa via para que imediatamente se sentisse largada e me cobrasse outra conduta, pois “é que já passei por isso, pelo abandono, agora só quero do meu lado pessoas que queiram verdadeiramente estar comigo”, escrevia-me.

Ao fim de duas semanas abandonei-a. Achei demasiada a cobrança e, por isso, escrevi “não te posso dar a atenção que precisas” em resposta a mais uma investida. Senti-me triste, recordo tão bem agora, como se eu mesmo estivesse a agir para, deliberadamente, viver infeliz. Mas, consciente de que triste já eu me tornava naquele tão curto espaço de tempo, pus fim à nossa relação.

“Olhai de que esperanças me mantenho!” (Camões)

Hoje, finalmente, pus termo à relação. E agora sigo observando as árvores despidas de cortiça, num esforço absurdo de fuga e de evasão de mim mesmo e da imagem de nós, como se quisesse apagar do meu próprio tronco as marcas de cinco anos de relacionamento tóxico, com interrogações constantes sobre os caminhos que tomava do trabalho para casa, as mulheres com as quais conversei, se saísse, por que não com ela, se respondesse, irritado com o ver-me controlado, por que gritava, perguntava-me, emocionalmente afetada, por que agia daquela forma, por que mentia, mentia porquê, não dizia a verdade porquê, nunca lhe dizia a verdade, que eu era exatamente igual ao ex que mentia, ao ex que desaparecia, e quando me insurgia e punha fim à conversa ou à história que titubeantemente construíamos, no mesmo dia ou nos seguintes recebia uma mensagem, dando conta de que me comportara igualzinho aos seus pais,

— só quero do meu lado pessoas que queiram verdadeiramente estar comigo. Já me basta ter sido abandona pelos meus próprios pais e por todas as famílias de acolhimento por onde passei,

que também eu a abandonava. Fazia-me sentir que, de facto, desistia dela, deixando-a sozinha com todas as suas mágoas e aflições, para mais sabendo como ela lutara para superar as múltiplas barreiras que a vida lhe entregou com enorme mérito e dignidade. Então alimentava-me dessa esperanças. Confiava que ela mudaria com o tempo. Que ultrapassaria mais uma barreira. Abandonaria as suas inseguranças. Seríamos enfim felizes. Tal nunca aconteceu.

Posso ser feliz?

Vim a Vila Real de Santo António passar uns dias sossegado. Vim em busca da Ana, como se de um feliz acaso se tratasse, eu, aqui, nesta pequena cidade algarvia, perto, muito perto da amiga que me vem tirando o sono todos os dias. Há dois anos. Conversamos. Rimos. Apoiamo-nos mutuamente. Amámo-nos. Sempre numa atmosfera de paz e tranquilidade que nunca consegui com a Bárbara.

No último ano encontrei-me com a Ana, uma, duas, três vezes. Por muito que a Bárbara me cercasse. Por muito que a Ana se chocasse com a nossa entrega, sentia-lhe a falta como se de mim mesmo me afastasse. Mais ainda quando, de ouvidos exaustos, tinha a Bárbara diante de mim, no seu discurso deprimente, dizendo

— segue o teu caminho, se não queres estar comigo de verdade,

sem saber que, no meu íntimo, eu já só pensava no cheiro da Ana no meu pescoço, no seu corpo nu colado e enroscado no meu, no abraço. Na cumplicidade. Na companhia extraordinária que, desde o início, encaixa tão bem em mim.

Estou grato por te ter conhecido, Ana. Por me complementares. Talvez não seja loucura estar aqui sentado, aguardando por ti. Livre. Finalmente liberto das amarras de uma relação abusiva.

Continue com Didier: “A ajuda que chegou pela ajuda”


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

camioneta: ônibus de turismo.

telemóvel: celular, smartphone.

cortiça: usada para fabricação de rolhas, é a casca “esponjosa” do sobreiro, uma árvore popular em Portugal (maior produtor de cortiça do mundo).

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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