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Vida real x ideal: além do conto de fadas
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Quando o que idealizamos espatifa-se no muro maciço da realidade

Não existe nada mais frustrante do que encarar a distância entre o real e o ideal. Esse espaço é feito de uma escala estranha: não há um extremo positivo. Tudo é mau. É um crescente de vários tons de cinza até ao preto total. Começa com desconforto, passa pela decepção — segue-se a frustração até aos contornos de tragédia.

Apesar de todo o nosso conhecimento e experiência, esse é um choque que não conseguimos evitar. Todos os dias idealizamos. Idealizamos o dia seguinte, a semana seguinte. Idealizamos as viagens, os aprendizados, os outros e até nós mesmos. “Eu achava que era outra coisa”, “Eu esperava algo completamente diferente” e “Ah, não sabia que era assim” são expressões corriqueiras que surgem quando o nosso ideal encontra o real. E qual é o diagnóstico da filosofia? Quanto maior a distância entre o mundo real e o ideal, maior é o desamparo. Maiores são os prejuízos. E maior, a nossa infelicidade.

O mundo real

Porém, apesar de sermos experientes nesse tipo de frustração, não nos emendamos, seguimos destemidos amando o ideal. E amamos tanto o ideal que fazemos dele um entretenimento. Adoramos imaginar o que faríamos se ficássemos milionários: daria a volta ao mundo, nunca mais trabalharia. Somos capazes de, num final de tarde, contemplar o horizonte e passar horas imaginando o que nunca poderá ser. É um exercício inútil, mas irresistível. O “como seria bom se fosse assim” conforta, dá satisfação. Não importa se, racionalmente, sabemos que algo nunca acontecerá. Mas como é bom imaginar o que poderia ser.

vida real x ideal

O ideal abraça

E por que fazemos exercícios do ideal? Porque o real é duro. Precisamos de vez em quando fazer uma pausa, precisamos do abrigo e do abraço reconfortante do ideal. Do real não há escape possível. Ele abarca todas as dimensões da vida. No fim da aula de uma nova disciplina no meu mestrado, questionei o professor sobre a sua relevância para o meu percurso acadêmico. Eu entendi que a disciplina tinha um pré-requisito: o conhecimento da obra completa de Aristóteles – um filósofo complexo, com uma obra vastíssima. Quem estuda Aristóteles, estuda só ele. Ora, um especialista em Aristóteles não estaria em um mestrado de Filosofia. O professor, muito sereno, disse-me que seria exatamente assim se vivêssemos num mundo ideal, mas… O fim da estória: apesar da constante sensação de que estava no lugar errado, frequentei estoicamente as aulas.

Esse é um exemplo de uma universidade, mas que pode se estender a tudo. Há o mundo ideal do futebol, onde os atletas entrariam em campo com alegria, somente para jogar. Respeitariam companheiros, adversários, árbitros e torcida. Há um mundo ideal, onde os políticos se ocupariam apenas do interesse coletivo e honrariam o compromisso para o qual foram eleitos. Os exemplos vão ao infinito.

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As viagens inaceitáveis

Se estamos habituados ao não ideal do mundo, o mesmo não acontece na esfera privada. Temos imensa dificuldade em aceitar o real. As relações são um campo vastíssimo onde sepultamos todos os ideais. Mas, fiquemos com um exemplo simples: as viagens. Ela exige antecipação, planejamento. É quase impossível não idealizar uma viagem. Imaginamos. Fazemos um roteiro e temos tempo para a cabeça divagar e idealizar. Infelizmente, a decepção não se resume ao excesso de turistas e equívocos na hospedagem – agruras que nunca imaginamos quando acarinhamos um destino turístico.

Assim aconteceu na minha última viagem — antes da loucura da pandemia instalar-se. Ocorre que não foi apenas uma viagem. Tratava-se da viagem dos meus sonhos. A viagem perfeita. Um destino permanentemente idealizado. Durante anos me imaginei andando pelas ruas da cidade, os caminhos que faria. Sem nunca ter ido lá, cheguei a ousadia de fazer roteiros para amigos. Brincava que tinha vivido lá na última encarnação. E como foi a viagem? Por enquanto — e até agora — a mais triste, a mais decepcionante de toda a minha vida.

E como lidei com a viagem real? Não aceitei. Fingi que não era comigo, que aquilo não estava acontecendo. Sabe aquela cena clássica dos filmes que mostra uma pessoa muito ferida — geralmente devido ao um tiro — que usa um pesado casaco para esconder o ferimento que sangra. O personagem está ali, fazendo um grande esforço para fingir que está tudo bem. Às vezes, nota um pouco de sangue, limpa. A febre é revelada no corpo que transpira. Ele enxuga com o lenço, disfarça a dor, simula um sorriso… Foi assim que me senti. No penúltimo dia, sucumbi ao cansaço – manter a pose cansa. E, no último dia, me sentia correndo perigo. Quando cheguei em casa, apesar de imensamente cansada, senti alivio. Respirei fundo e voltei para o mundo real.

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O que vejo

Infelizmente, para o nosso próprio prejuízo, o ideal segue muitas casas à frente do real. E tem piorado com a adesão maciça das redes sociais. Afinal, as fotos e os nossos posts mostram apenas o ideal. O real nunca aparece. E quando aparece, está maquiado, colorido artificialmente por filtros ideais. Quanta dor e tristeza não existem por trás dos sorrisos das selfies? É a clássica lágrima do palhaço — modernamente traduzida no suicídio de Robin Williams. O ator e comediante mostrava o seu ideal humor esfuziante e escondia uma depressão severa. E aqui, mais uma vez, o real venceu o embate.

É preciso que se diga que uma parte da filosofia de todas as épocas combateu o ideal, mas não pela preocupação com a sua dimensão agressiva, mas pela sua inutilidade. O combate não é apenas pelo insucesso dessa estranha fuga. Não se trata da denúncia de que a experiência idealizada, dificilmente se encaixa na realidade. Ou que as dificuldades de viver e a tragédia da condição humana não são modificadas pelas nossas fantasias.

Nietzsche

Porém, o grande mal é que quando se exercita o ideal, nega-se a vida. Quando idealizamos, habitamos a dimensão do futuro e fechamos os olhos para o mundo real. E acabamos por ficar sem nada porque não há outra realidade além da que é vivida aqui e agora. Toda a filosofia estoica faz essa denúncia, mas é Nietzsche que vai além.

Mais do que “aceitar a vida que se tem”, Nietzsche afirma que é preciso AMAR a vida tal como ela se apresenta. E aqui chega-se a um dos principais conceitos da filosofia de Nietzche, o amor fati. Literalmente, transcrito do latim, significa “amor ao destino”. Essa é uma das razões pela qual Nietzsche é conhecido como um vitalista, um filósofo pró-vida, ao contrário dos seus antecessores idealistas. E não importa se sua vida é boa ou má. Trata-se de uma aceitação incondicional da vida.

Amar a vida

E que ninguém pense que Nietzsche não vivia de acordo com o que pregava. A doença acompanhou-o por toda a sua vida. Aos 21 anos já era professor de grego e latim na Universidade da Basileia. Apesar de falar muito baixo, consta que era um ótimo professor e suas aulas eram graciosamente improvisadas a partir de pequenas anotações de suas dedicadas pesquisas. Mas as aulas não duraram. A carreira acadêmica foi precocemente abreviada pelas fortes dores de cabeça associadas às dificuldades de visão. Ler e escrever eram tarefas penosas. Viveu de cidade em cidade, em busca de uma melhor clima para amenizar o impacto da sua doença.

É possível amar uma vida assim? Em Gaia Ciência, ele respondeu que “sim”. Nietzsche escreveu “Não, a vida não me desapontou! Pelo contrário, todos os anos a acho melhor, mais desejável, mais misteriosa…”. É preciso aprender a amar a realidade que está agora à nossa frente. É preciso que o instante mais importante da vida seja este exato momento. É preciso amar a vida que temos, tal como ela é.


Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e mestre em filosofia. Mora em Portugal há 18 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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