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Afinal, é realmente bom ter esperança?
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A primeira vez que vi o lado escuro da esperança foi no filme The Shawshank Redemption (traduzido no Brasil por Um Sonho de Liberdade e em Portugal por Os Condenados de Shawshank). Nesse que figura na lista dos melhores-filmes-da- minha-vida”, há uma espécie de menu de esperanças para cada tipo de personalidade. Ali constatei que a esperança pode ser ruim, inviabilizar o futuro e até enlouquecer uma pessoa. Foi um soco no estômago porque até então eu considerava a esperança completamente maravilhosa.

O mundo do cárcere põe a nu a capacidade humana de confiar, condenar ou esperar o devir. O que resta ao individuo privado da sua liberdade, senão exercitar a capacidade de esperar? Mas o mesmo não se poderia dizer sobre a vida na sua generalidade? Baseado no livro Rita Hayworth and Shawshank Redemption, de Stephen King, o filme conta a história do banqueiro Andy Dufresne (o grande Tim Robbins) — condenado injustamente  à prisão perpétua pelo assassinato da esposa e do amante dela. Na prisão, uma grande amizade unirá Andy e o detento Ellis Boyd “Red” (na pele de Morgan Freeman). Uma relação que equilibra-se entre a esperança de Andy “contra todas as possibilidades”  — quase como um traço de loucura — e a ausência de esperança de Red que faz o contraponto e alerta para o caráter insano da esperança.

Tenha esperança!

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Ficção à parte, o apelo à esperança está por toda parte. É difícil enxergar os traços menos bom da esperança, porque máximas como “A fé move montanhas”, “quem espera, sempre alcança”, a “esperança é a última que morre” fazem parte da nossa cultura de tradição cristã. A gênese dessa crença é que a esperança compõe — juntamente com a fé e o amor — as três virtudes teologais. É esse tripé que rege, motiva e é objeto imediato da nossa relação com Deus. Temos que amar o próximo, ter esperança na vida depois da morte física e muita fé para manter a certeza desse caminho. E,  por extensão, essa prática garante-nos o agir bem e a felicidade.

Mais tarde, a minha concepção de esperança recebeu mais um golpe com o  seminário “A felicidade desesperadamente” do filósofo francês André Comte-Sponville. Habituada ao sinônimo comum de “desespero” como aflição extrema, no meio do seminário fui surpreendida pela constatação de que o “desesperadamente” ali referido era, literalmente, “não esperar”. Eis um caminho para a felicidade, recomendado por Sponville: não ter esperança.

A imaginação que conforta é esperança

Diante de paradoxos, vale a pena olhar mais de perto. A esperança é um sentimento, um dado da consciência, um afeto, algo que se sente, mas que também acontece no corpo. A esperança é um afeto da mesma espécie da alegria. De acordo com a teoria dos afetos de Baruch Spinoza, os afetos é tudo aquilo que aumenta ou diminui a potência de viver. E aqui vem a origem da nossa grande atração pela esperança:  é um conteúdo emocional imaginado — não existe — mas que aumenta a nossa potência de viver. Só para continuarmos no pensamento de Spomville: quando você fantasia um primeiro encontro amoroso, isto é um tipo de esperança, um afeto alegrador.

E essa alegria serve para quê? Não prática, não serve para muita coisa. Os estoicos — e  mais tarde Nietzsche irá retomar o assunto —  são os primeiros a denunciar os aspectos negativos da esperança. A primeiro diagnóstico é o cenário: a esperança só surge em cenários desfavoráveis — e esta é a primeira razão porque muitos se agarram a ela. Por que ela não está presente em contextos ou momentos de vida em que nos sentimos plenos? Porque não precisamos dela. Mas, não é maravilhoso na adversidade pensarmos em coisas boas, abstrair-se? Qual é o problema disso? Primeiro, responde Nietzsche, porque é uma estratégia de fuga, uma forma de negar a realidade. E, segundo, porque a fuga não é impunemente, há um preço.  Esse comportamento produz consequências sobre a vida. O esperançoso deixa de viver o presente para habitar uma realidade que não existe. Vive-se num modelo ideal mental, no futuro, não na vida real.

O interior é oco

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E não é apenas porque a esperança funciona como freio de mão da vida. No raioX,  ela conduz o individuo para o terreno da ignorância. Quando você espera por algum coisa é porque não tem certeza se ela virá — se tivesse certeza, você não esperaria. Portanto, o esperançoso vive na ignorância. Se você pudesse realizar o seu desejo, você agiria — e não esperaria. Portanto, o esperançoso é também impotente. E, finalmente, toda esperança pressupõe algo que falta, portanto, aquele que espera é carente.

Eis aqui a face inteira daquele que espera: ignorante, impotente e carente. E para piorar, aquele que espera perde o melhor da festa porque todos esses adjetivos tiram o foco da vida. Como você imagina uma vida impotente, carente e ignorante? É uma vida desfocada, morna. A esperança desintensifica  a vida. E fecha-se o ciclo da crítica de Sponville: “a felicidade é o alinhamento entre o corpo e a mente num mesmo instante”.

Eu reconheço que me entusiasmo com as teorias filosóficas, apelo para a necessidade de viver a vida como ela é — com direito às  veias saltadas do estoicismo — e proponho tarefas duras aos leitores. Portanto, corrijo. A esperança não é de toda ruim, ela pode ser amorosa e confortante como uma pantufa no inverno. Permita-se, às vezes, tê-la por perto. Mas quando a esperança estiver na sua frente, olhe-a de cima a baixo, dê-lhe o braço, talvez um passeio no quarteirão. Mas nunca dependa dela. Jamais.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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