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Aceitar o não saber, ter coragem para seguir o desconhecido
Kimberly Farmer
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Escrevi “seguir o desconhecido”, mas penso mesmo é no verbo “navegar” para isso. E aí, me lembro da jornada recente de Tamara Klink, a mais jovem velejadora brasileira a cruzar o Atlântico em solitário. Gritam de um dos cais em que aporta na travessia e a questionam se é ela a moça corajosa que se lançou sozinha ao mar em seu pequeno veleiro de 26 pés — algo como oito metros de comprimento. Da Noruega, onde comprou a Sardinha, a embarcação, passou pela Dinamarca, França e Portugal. Do último país, preparou-se para a grande travessia de 1.700 milhas que a levariam a Pernambuco, Brasil.

“Não foi preciso coragem para chegar até aqui. Foi preciso acreditar, caminhar, arriscar, renunciar, aprender, insistir e tentar de novo, de outro jeito. Mas coragem mesmo teria sido ficar no lugar de onde eu vim; Renunciar à pequena possibilidade do sonho; E, todo dia, tomar a mesma decisão de adiar a descoberta de mim mesma.”

As cicatrizes de viagem, os prantos e os prontos de Klink estão em dois livros: “Mil milhas” e “Um mundo em poucas linhas” (encontrados separadamente ou num box nomeado “Crescer e Partir”). Não são mapas cartográficos com caminhos bem traçados para quem quer se lançar ao desconhecido e à coragem, mas certamente são bússolas. Faróis a iluminar outras possibilidades.

Esse mesmo sentimento de abandonar-se ao desconhecido, aliás, é acionado com a leitura do romance fractal de Georges Perec, “A vida modos de usar”. O experimento literário brinca tanto com a estrutura que ou o leitor solta suas amarras ou fica preso no engessamento de quem procura respostas para tudo. Composto de 99 capítulos, a obra é arquitetada como um puzzle em que cada parte tem uma história independente, mas que, no fim das contas, conectam-se entre si. Perec fazia parte do grupo Oulipo, criado na década de 1960 e que submetia a escrita a jogos e a regras. O lúdico e a norma. A brincadeira e o mandamento. O quebra-cabeça como metáfora para a própria vida.

Ninguém viverá nossa vida

Comecei esse texto sem saber onde ele daria. E se me lancei ao desconhecido é porque, neste exato momento, leio a frase que estampa o último convite do Les Rendez-vous littéraires rue Cambon, da Chanel, e que traz a obra da escritora franco-marroquina Leïla Sliman: “Personne n’écrira à votre place”.

“Ninguém escreverá por mim” e, por isso, escrevo. Porque não quero renunciar à pequena possibilidade do sonho — e da descoberta de mim mesma.

No fim das contas, Tamara tem razão. Não é da coragem que precisamos para enfrentar o desconhecido. É de crença nas alegrias do caminho. Tamara tem razão, já Perec, em seu título, nem tanto: a vida, em seus métodos, desvalida modos de usar. Repara e vê.

Leia todos os textos da coluna de Gabrielle Estevans em Vida Simples.


GABRIELLE ESTEVANS (@gestevans) é jornalista, psicanalista e medrosa (em desconstrução). Escreve sobre literatura, gênero e política e, na Vida Simples, receita livros para variados tipos de dores e amores.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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