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Abandono
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O almirante Chester Nimitz foi comandante da marinha americana durante a Segunda Guerra Mundial, e teve a responsabilidade de avançar para o oeste, em direção às batalhas do Pacífico. Em 1975, foi lançado ao mar o maior porta-aviões já construído até então. Movido a propulsão atômica, era imponente com seus 333 metros de comprimento,  capaz de acomodar 90 aviões de diferentes tipos em seus porões, e lançá-los ao ar em minutos. Recebeu o nome de Nimitz, em justa homenagem. Em 1980, comprei meu primeiro barquinho e, em um momento de autoestima exagerada, batizei-o de Nimitz também. Meu Nimitz era um barco de madeira, com duas velas, cerca de seis metros de comprimento e dois de largura. Precisava de dois velejadores e podia levar mais uns dois ou três passageiros. Ficava guardado no Iate Clube de Florianópolis, e eu costumava dar a volta à ilha de Santa Catarina com ele. Me diverti muito com meu bravo barquinho.

Só que, ao contrário do porta-aviões americano, que ainda navega pelos mares, sempre disponível para se aproximar das regiões de tensão no mundo, o meu Nimitz parou de navegar há um bom tempo. Ele era de madeira forte, bem tratada. O estaleiro que o construiu era competente e seu design era impecável. O que aconteceu, então? É que, com o passar dos anos, ele foi decaindo, surgiram frestas, descascou, começou a ranger. Até que, um dia, foi abandonado na garagem da casa de praia de um amigo, ao sul da ilha catarinense. Mas, por quê? A resposta é simples, mas só a elaborei vários anos depois. O barco não foi abandonado porque começou a ficar ruim. Ele ficou ruim porque foi abandonado. E isso aconteceu porque, com o passar dos anos, fui perdendo o interesse pela vela. A carreira profissional começou a exigir muito e minhas idas a Florianópolis ficaram cada vez mais esparsas. Além disso, me apaixonei por outro esporte, o tênis, atividade fácil de praticar e que não demandava muito deslocamento.

Hoje, quando me lembro do Nimitz, surge em meu peito um sentimento duplo, ambíguo. Por um lado penso nos momentos fantásticos que tive com ele. Minha memória é invadida pelas imagens de meus amigos, a alegria de meu filho pequeno, as manhãs ensolaradas, a força do vento e o carinho da brisa. E, por outro lado, vem um sentimento de culpa, um aperto no peito, como se eu tivesse deixado um amigo: “Isso não se faz”, penso.

Acho que é perfeitamente normal mudarmos nossos centros de interesse. Aliás, é até bom, pois precisamos aumentar nossa visão de mundo, conhecer coisas novas, expandir nossos alcances. Eu mesmo já mudei muitos hábitos, práticas, interesses. A vida é assim, penso. Coisas velhas vão ficando para trás, não podemos carregar tudo pela vida, precisamos seguir mais leves. Senão seremos como o personagem Rodrigo Mendoza, interpretado pelo ator Robert de Niro no filme ?A Missão?. Em castigo autoimposto, ele avança por uma floresta e até sobe cachoeiras, desafiando a natureza e as correntezas. E faz tudo isso carregando bravamente uma rede cheia de velhos objetos de prata, o que, claro, prejudica bastante a caminhada.

Tem muita gente parecida com Rodrigo Mendoza, que avança pela vida carregando pesos mortos, de coisas ou de culpas. Pensando bem, é natural e até conveniente que deixemos coisas pelo caminho. O mal não está no avanço, na mudança de interesses, na evolução natural das coisas. Mas no descaso, na falta de cuidado, no desleixo. No abandono, em síntese. Para mim, o veleiro Nimitz é simbólico. Pela importância que teve naquela fase da minha vida, ele merecia um destino mais nobre –  penso hoje. Eu poderia tê-lo vendido para alguém que continuasse a usá-lo, cuidando de seus velhos costados. Ou, ainda, tê-lo doado a uma escola de náutica de Santa Catarina, onde serviria para que dezenas de garotos e garotas aprendessem a respeitar o mar e a se apaixonar pela vela. Mas não foi o que eu fiz. Minha atenção foi requisita por outras coisas e ele se deteriorou com o tempo. Pobre embarcação. Eu sei, objetos não têm sentimentos, não sofrem pelo abandono, mas a memória do barco não pertence a ele, pertence a mim, uma pessoa, que, sim, tem sentimentos e remorsos.

Nem sempre os abandonos são ruins, claro. Ideias, por exemplo, precisam ser deixadas de lado, principalmente quando são ?nada a ver?, quando têm erros conceituais, medos infundados e preconceitos burros. Ideias tolas merecem mesmo ser abandonadas e completamente consumidas pelas traças da indiferença. Mas só elas. Meu Nimitz virou símbolo de uma atitude que se deve evitar: o abandono. Pense nas amizades que você abandonou e desapareceram pela falta de uso, de convivência, de cuidado. Lembre de roupas, sapatos e livros esquecidos no fundo de armários ou prateleiras empoeiradas, e que poderiam estar servindo muito bem a outras pessoas. Ou de sonhos deixados de lado, de projetos fechados no arquivo morto da memória porque simplesmente paramos de investir neles. Há casais que, dominados pela rotina e pelo tédio, desistem da própria relação, que, exigente, suporta tudo, menos abandono. Não dá para abandonar o casamento, nem os amigos, muito menos a saúde, o corpo, a carreira ou o estudo. Senão começam a ranger, descascar e fazer água.

Há vários Nimitz em nosso caminho, que poderiam ter sido mais bem cuidados, tratados, reciclados, polidos, doados, feito úteis, participando da vida de alguém e não apenas de nossa memória. A troca de interesses é que gera movimento, evolução. Isso é natural e saudável. Mas o simples desinteresse que origina o abandono tem um lado triste, melancólico, quando não cruel, como o de gente que, nas férias, deixa seu cachorro para trás, totalmente desamparado, porque o interesse agora é outro. Vamos em frente. Troquemos de emprego, de estilo, de amigos, de cidade, de ideias, de namorados, de carro, de casa. Evoluir é preciso. A mudança pela evolução faz bem, muito bem. Não me arrependo das trocas que fiz ao longo da vida, provocadas pela melhoria, mas sofro pelos abandonos que pratiquei, filhotes do mero descaso.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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