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A coragem de não agradar
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A vida é sempre com o outro. Não é exagero dizer que viver é relacionar-se. E como não há outro jeito, o melhor é que essa relação seja boa. Diante disso, começa um aprendizado que dura a nossa vida inteira: agradar aos outros. Somos iniciados nessa tarefa desde cedo. Primeiro os nossos pais, depois os irmãos, professores, amigos. Para as mulheres a tarefa é ainda maior e ganha contornos de dever. Numa família onde eu era a única menina entre três meninos, notei logo a diferença. Cresci ouvindo que “menina tem de ser queridinha”, “tem de ser boazinha”, “não pode gritar”. — E por quê? “Porque você é menina”. Vendo o desequilíbrio injusto em relação aos meus irmãos, fui muito combativa e lutei bravamente pelo direito de não agradar. Passei parte da infância e adolescência numa espécie de guerrilha e senti-me vitoriosa em cada momento em que não agradei.

Mas, qual é o mal em agradar? Nenhum. O problema acontece quando, na ânsia de construir relações harmoniosas e estar em paz com todos, anulamos as nossas próprias vontades. Às vezes, para agradar, passamos por cima dos nossos interesses e negligenciamos até as nossas necessidades mais fundamentais. É importante ressaltar que ao mesmo tempo que construímos relacionamentos com os outros, também temos a tarefa de construir a nós próprios. Como conciliar essas duas tarefas?

Eu, apesar do outro

O austríaco Alfred Adler (1870-1937) — um dos gigantes da psicanálise junto com Sigmund Freud e Carl Jung — dedicou sua vida a essa problemática: o profundo choque da nossa personalidade única com os outros e a luta para sermos quem somos. Fundador da escola de Psicologia Individual — apesar de não ter a fama de Freud, seu colega  e contemporâneo — ele tem seguidores em todos os lugares do globo.

Adler bateu-se incessantemente — inclusive contra Freud — sobre a importância do homem cumprir a máxima grega “torna-te quem tu és”. Como se libertar da opinião dos outros? Como superar as limitações impostas pela relação com o outro? Mas, como se tornar a pessoa que se deseja? Como cultivo a minha personalidade única, construo minha autorrealização, sem ferir o outro e sem me sentir marginalizado? E mais difícil: Como fazer tudo isso, apesar do outro.

E quais são os problemas que os outros trazem? Complexo de inferioridade, autoestima baixa, sentimentos de impotência, injustiça, desaprovação, inadequação, não pertença… a lista é longa. Se você reparar, tudo o que te afeta — para o bem e para o mal (precisamos ser justos) — tem origem e eco nos outros. Sentimos complexo de inferioridade em relação a quem julgamos que conseguiu mais do que nós. Alimentamos o sentimento de injustiça se consideramos que as pessoas que ajudamos ou amamos não corresponde ao que esperávamos delas. Sentimo-nos miseravelmente inadequados quando não somos acolhidos como desejamos. Frustrados quando não somos reconhecidos ou premiados por aquilo que julgamos ser a nossa contribuição máxima. A ingratidão é duramente sentida quando vem daqueles que esperávamos recompensa.

Goste de mim!

E o que fazemos para tentar reverter essas fontes de infelicidade? Tentamos agradar. E às vezes, tentamos agradar, até contra nós, atacando a nossa natureza. E nesses tempos de massiva tecnologia, chegamos a um ponto temerário. Na excessiva exposição das redes sociais, o agradar a todos ganhou ainda mais relevância. Publica-se posts, partilha-se ideias, informações e momentos da vida privada com um único objetivo: a aprovação dos outros.

Quando se tem poucos seguidores no Instagram ou poucos amigos no Facebook; quando o que se publica não tem curtidas ou comentários… todos esses cenários são assimilados de forma muito negativa, nunca indiferente. Sentimo-nos ignorados e com a autoestima abalada. Constatamos que não agradamos e — vergonha maior — é público. Todos são testemunhas de que o seu post não teve uma única curtida, você foi completamente ignorado. Há cenário pior? Há. Quando o seu post é alvo de reações negativas. O golpe é dolorido… Muitos não aguentam e apagam.

Você poderia me agradar?

Com a mesma gravidade vivemos situações semelhantes na vida de todos os dias. E não é só porque tentamos agradar, é também porque queremos ser agradados. Esperamos bondade e comportamento ético dos outros e estamos sempre sendo nos surpreendendo. Mesmo as amizades consolidadas podem ser abaladas por essa expectativa. Quando sentimos que uma gentileza ou um esforço não foi devidamente percebido e agradecido, podemos entrar no terreno do ressentimento e a amizade pode descer vários degraus.

Seja de quem for, estamos sempre buscando reconhecimento. Esperamos que nos agradeçam como deve ser, que apreciem o nosso trabalho, que retribuam um favor, que correspondem a um ato de generosidade. Se isso não ocorre, interpreta-se como se o gesto não teve valor, não foi considerado e, pior, personaliza-se. O gesto e a pessoa fundem-se. Levamos para o lado pessoal, acreditamos que não fomos considerados e sofremos.

Eu sou único

Aqui, o ponto central, a fonte de onde vem todos os problemas. É fácil aceitar a ideia de que cada um é único, mas aceitar que esse caráter único, também gera comportamentos únicos, é mais difícil. A assimetria das relações — gerada pelas diferentes individualidades — passa sempre longe da compreensão. Mas é na esfera privada que a assimetria das relações ganha cores ainda mais fortes. Sempre achamos que não somos amados da mesma maneira que amamos. Os clássicos “ama, mas do jeito dele” ou “o jeito dela amar é esse” são sentenças daqueles que desistiram de serem agradados ­— e, às vezes, de agradar.

Há pessoas que sentem imenso prazer em agradar, às vezes, mais do que serem agradados. Há diferentes formas de expressar amor e gratidão. Também há pessoas que verbalizam de forma clara e direta o que sente, outros tem mais dificuldade em expressar o que sentem. Já que sabemos que é assim mesmo, por que não estamos em paz? Porque, por cima de tudo isso, somos seres que perseguem a verdade. E sabe-se que, na maioria das vezes, as relações com ausência do “eu te amo” querem dizer exatamente isso, que não há amor. Quantos rompimentos não comportam o “nunca te prometi nada”.

O mundo do capital

Há outro complicador moderno que é devastador: o sistema capitalista. Presente em todas as esferas, ele também chega às relações. Há pessoas que só concebem um relacionamento como moeda de troca. Eu te agrado, você me agrada. E já ouvi pérolas do tipo “sou amigo, mas sou exigente”. Leia-se: sou amigo, mas quero uma recompensa por isso. É como um comércio: entrego isso e recebo aquilo.  E aqui diz Adler: “quando uma relação baseia-se na recompensa, há uma voz interna que diz: eu te dei isto, você tem que me devolver aquilo” Aqui chegamos a um cenário inesgotável de conflitos. Porque a apreciação do que se dá e do que se recebe é muito particular. Como um balancete com erros, as contas nunca fecham.

O próximo nível de problema

E é só isso? Não. Os conflitos não vêm apenas de ações e de como elas são percepcionadas pelo outro. No mundo vamos encontrar pessoas que não nos entendem e, claro, pessoas que não gostam de nós. A saída? Encarar como um elemento natural da vida e não levar para o lado pessoal — a atitude é do outro, o problema é do outro — não se deve fazer drama. Não agradar e não ser agradado faz parte. Quem se sente pessoalmente ofendido, reage e parte para o conflito. O que se deve ter em mente é que cada um tem os seus valores e pensa de acordo com eles. E não são apenas os valores, os contextos também. Mesmo pessoas que possuem os mesmos valores, mas cresceram em contextos e em épocas diferentes, vão pensar diferente. E é natural que seja assim.

Quem anda pelo mundo levando tudo como ofensa pessoal, vê inimigos e complôs em toda parte, nunca está em paz e não deixa os outros em paz. Decerto, não há prisão maior do que buscar a aprovação do outro. É uma espécie de escravidão. Vive-se para alimentar e atender as expectativas do outro. Com a missão de não decepcionar, deixamos de ser quem somos.  A verdadeira liberdade, a festejada autonomia, vem exatamente daqui. Aceitar como normal o fato de que seremos desagradados e nem sempre é possível agradar aos outros é o caminho para a vida livre, para a serenidade e para a paz de espírito.

Avanços e recuos

Na minha luta para me libertar do desejo de agradar tenho tido, inegavelmente, vitórias e derrotas. Já ignorei muitos cenários que não me favoreciam; já sofri por não conseguir agradar cem por cento. Na minha última relação fui ao limite máximo da minha capacidade de agradar. Na busca da harmonia e da união perfeita, segui tentando atender às expectativas — muitas vezes me anulando. Mas depois resgatei o meu equilíbrio. As ex-namoradas, as ex-esposas tem algo de muito libertador: elas não tem a obrigação de agradar. O próprio estatuto de “ex” já tem isso implícito. As ex’s são livres. Elas podem desagradar à vontade.

Libertar-se das expectativas alheias e não sobrevalorizar a apreciação dos outros é um espécie de escudo que nos protege da raiva, da autoestima baixa, da rejeição, do complexo de inferioridade. Mas não é um caminho fácil. Ultrapassar as limitações impostas pelos outros e, muitas vezes, por nós mesmos, exige prática e vigilância constantes. E nem sempre somos bem sucedidos. Afinal, há ainda pelo meio as nossas fraquezas e o quanto estamos dispostos a arriscar. É preciso ter coragem.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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