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A arte de não sofrer
Külli Kittus
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Sempre ouvi a pergunta “como a filosofia pode me ajudar”. Ultimamente — tempos de urgência — a pergunta é mais direta: que filosofia pode me ajudar? Uma questão pertinente. Afinal, filosofias há muitas. Ela abarca desde as grandes questões da humanidade — o que é Deus, como se dá o conhecimento, o que é o tempo — passa pela lógica e, finalmente, sobre a existência humana e o embate entre os nossos desejos e a realidade que se apresenta.

Não há nada contra as grandes ideias, a questão é que a maioria está ocupada com questões sobre a melhor forma de viver, como deixar de sofrer e qual é o caminho certo. É uma questão de hierarquia. A esfera privada está em primeiro plano e é a nossa base de lançamento para outros voos. Há um cartoon de Bill Waterson que mostra o seu personagem Calvin caminhando contrariado em direção à escola. O problema? Antes de qualquer tema que a escola queira ensiná-lo, ele quer saber primeiro qual é o sentido da vida.

Ensina-me a viver

Sinto uma enorme felicidade quando vejo livros de filosofia para crianças ou iniciativas de “escolas da vida” — como a Casa do Saber — ou a School of Life, de Alain de Botton. Somos lançados na vida, sem instrução, sem preparo. Se vivêssemos num mundo perfeito, ensinar a viver deveria fazer parte do currículo escolar. E se essa disciplina existisse, uma boa sugestão para o primeiro capítulo seria o estoicismo. Trata-se da mais completa das escolas filosóficas. Serve para tempos de paz e para tempos de guerra; são lições práticas, de fácil digestão. É como — para usar uma palavra da moda — uma mentoria. E, finalmente, é atemporal. Criada no início do século III a.C pelo grego Zenão de Cítio manteve-se sempre ativa e, ao longo dos séculos, influenciou outras escolas filosóficas, teóricos e, principalmente, o pensamento cristão.

De largo espectro, pode beneficiar desde a alta liderança até o mais comum dos homens. Não é exagero retórico, os três maiores expoentes do estoicismo foram um imperador, um escravo e um intelectual. Respectivamente, o imperador romano Marco Aurélio; no outro extremo, o escravo Epicteto e, entre eles, Lúcio Aneu Sêneca, um dos maiores intelectuais do império romano.

Essa diversidade de teóricos reflete no seu corpo filosófico. O estoicismo contempla o peso da liderança, a solidão, o sofrimento da escravidão, as injustiças sociais, o desespero da decadência e o medo da morte. Condições que também enfrentamos hoje. Qual é a proposta estoica? Antes de tudo é preciso preparo. Não podemos entrar na vida despreparados. E para eles as armas são as quatro virtudes estoícas: a sabedoria, a coragem, o autocontrole e a justiça.

Às armas

Devidamente apetrechados, estaremos aptos para a primeira lição do estoicismo: diferenciar a experiência externa — as coisas que estão fora da nossa mente — da experiência interna. Basicamente é o mesmo que separar o que podemos controlar, daquilo que não podemos controlar. A ideia é focar a nossa força naquilo que depende de nós. Não importa o quanto nos esforcemos, nunca teremos total controle sobre os eventos externos. Não está no nosso poder o comportamento dos outros ou os caprichos do devir, por exemplo.

E o que fazer com as agressões, reveses e as armadilhas do destino que recaem sobre nós?  Interpretar, resignificar e modular os seus efeitos em nós. Você já deve ter ouvido por ai que “Não é o que acontece com você,  mas é como você reage ao que te acontece que importa”. Pois. Máxima de Epicteto. A ideia é “construir” o nosso olhar sobre a realidade. É claro que devemos agir sobre ela, mas o foco, a artilharia pesada, é interna. Marco Aurélio, afirma que a felicidade depende da qualidade desse exercício. Quanto mais qualidade de pensamento, mais qualidade nas ações.

Pense e aja!

E aqui entra o caráter essencialmente prático do estoicismo: as ações. “Não perca mais tempo discutindo sobre o que um homem bom deveria ser. Seja um”, desafia Marco Aurélio. Esses pensadores ensinaram pelas palavras, mas também pelo exemplo de vida. A obra “Meditações” de Marco Aurélio foi escrita como uma reflexão para ele mesmo. O homem mais poderoso de seu tempo — considerado o último dos cinco grandes imperadores de Roma —  Marco Aurélio que não tinha nenhum motivo para expor suas virtudes e vícios. Sua sabedoria impediu que ele fosse corrompido pelo poder. Ciente de que as atitudes eram mais importantes do que as palavras, antes de buscar ser um grande imperador, procurava ser um homem bom e justo.

Meu mundo interior

Epicteto mostrou que aquele que está seguro em seu mundo interior, qualquer lugar será bom para se viver,  independentemente das adversidades. Diz ele: “Doente e ainda sem feliz; em perigo e ainda sim feliz; no exílio e ainda assim feliz”. Essas frases fora de contexto poderiam parecer autoajuda oca. Mas ela ganha outro significado quando vem de alguém que viveu boa parte da sua vida numa condição hostil. Epicteto foi escravo de Epafrodito, o cruel secretário de Nero. Segundo a tradição, seu senhor quebro-lhe uma perna. Uma agressão da qual nunca se recuperou e passou a andar de muleta. Aliás, nem sequer sabemos o seu verdadeiro nome. Epicteto significa “adquirido” ou “comprado” . Talvez a coragem — uma das quatro virtudes estoicas — tenha na biografia de Epicteto a sua mais perfeita tradução: “Às vezes, até viver é um ato de coragem”.

Pensamento e ação

Eu já ouvi muitas críticas de que o estoicismo é uma filosofia para abnegados e passivos. É uma crítica injusta. O estoicismo não prega a aceitação passiva da vida. Marco Aurélio liderou uma Roma tempestuosa com guerras e pestes e teve que implementar decisões difíceis. Ele próprio sentiu a aridez da sua máxima “se não for certo não faça, se não for verdade não diga”. Sêneca defendia o tratamento humano para com os escravos e era vegetariano, dois grandes escândalos para a época. Bem nascido e culto, sempre ocupou altos cargos no senado de Roma. Após intrigas políticas, foi condenado ao exílio. De regresso, voltou como conselheiro de Nero e, no fim da vida, foi condenado à morte pelo próprio imperador. Mas, foi, até o ultimo suspiro, um combatente estoico.

Epicteto, apesar da sua condição, tinha como grande ambição uma vida plena, arrimada em nobres valores morais e éticos. Nessa busca, a condição de escravo não foi impedimento. Epicteto julgava que apenas o seu corpo estava destinado a escravidão, a sua mente permanecia livre.

Ser

Apesar de árdua, a ambição estoica é tentadora. Principalmente porque ela nos é muito familiar. O cristianismo assimilou muitos conceitos estoicos. Inclusive Sêneca trocou correspondências com o apóstolo Paulo. Na filosofia oriental, o budismo tem muitas semelhanças. Manter o equilíbrio perante o sofrimento; serenidade para evitar pensamentos destrutivos; coragem e autocontrole nas adversidades… Se você ficou desanimado pela dificuldade da prática estoica e pensa que ela não está ao seu alcance, então você está num bom caminho. Afinal, diz o estoico “só é impossível aprender aquilo que você acha que já sabe”.

Comece olhando o seu interior, analise o que te aflige e diminua os valores da escala. A sua vida financeira tem grau oito de insatisfação? Diminua para quatro? As suas relações, nove? Diminua para cinco. Vê? Já está melhor. Sêneca diz que na maioria das vezes estamos mais assustados do que derrotados, mais fragilizados do que destruídos. Sofremos mais por conteúdos fabricados pela nossa mente do que aquilo que existe na realidade. E, nesse exercício, não esqueça de diminuir a escala de exigência com você mesmo. Epicteto afirmava que nunca conheceu um estoico completo. Ser um aspirante a estoico já é o suficiente. Põe-te na estrada.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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