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“A ajuda que chegou pela ajuda”, um conto de Didier Ferreira
Dan Freeman | Unsplash
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Caminho apressado. Faltam dez minutos para o comboio partir da estação. É frequente ele chegar atrasado, partir atrasado. Mas hoje não me posso dar ao luxo de contar com o acaso. Preciso mesmo chegar um ou dois minutos antes para garantir que o apanho.

O Gabriel não se tem portado nada bem na escola. O diretor de turma ligou-me preocupado, porque, no espaço de uma semana, o meu filho recebeu três ordens de expulsão da sala de aula, em disciplinas diferentes. São demasiadas vezes para o meu gosto.

Apressei-me a marcar reunião com o diretor de turma. Quero saber o que se passa. Já. O que tem acontecido. Que comportamentos o Gabriel tem apresentado para tão grave penalização. Solicitei o encontro para hoje mesmo. Tenho urgência em encerrar o caso, disciplinar o meu educando, evitar maiores danos.

A caminho

Hoje de manhã choveu. Ainda tenho dificuldades a andar sobre a calçada portuguesa. Faço-o como posso. Cuidadoso. Atento no equilíbrio. Calcando firme os pés no chão. Desviando-me para a estrada quando posso, porque aqui dá para correr um pouco, um pouquinho, o suficiente para encurtar em segundos o tempo. Volto ao passeio. Retorno aos cuidados para evitar uma escorregadela, uma entorse, uma queda valente.

Acelero quanto posso. O caminho já não é tão inclinado, embora daqui à estação seja sempre a descer. Mas agora apelo às pernas. Não tenho já o impulso e o vento nas minhas costas a facilitar o andamento. Agora tenho, isso sim, pedras soltas no passeio e o Gabriel no pensamento. Aborreceu-me a chamada do diretor de turma. Mais ainda o facto do meu filho desrespeitar os professores enquanto adultos e profissionais.

Mesmo quase a chegar…

Finalmente abandono a calçada portuguesa. Embalo o passo. Acelero. Vou rápido, cortando os últimos três minutos que me distanciam da estação ferroviária. Resta-me apenas descer a longa escadaria que atalha entre casas, cinco lanços de escadas com muitos degraus, um corrimão ao centro. Depois, descendo um pouco mais e apanhando a estrada principal, dobrarei à esquerda e verei a estação.

Entretanto o meu telemóvel vibra, vibra. Atendo. É o Gabriel. Diz-me que já saiu da escola, está a caminho de casa, que assim que chegar irá tomar banho, comer, ler e estudar durante duas horas. Depois verá televisão até eu chegar. Agrada-me, como sempre, a proposta de ocupação da tarde do meu filho.  No entanto, hoje sei que se tem portado mal. Que desrespeita os professores e os colegas. Não estou contente com ele. Tão pouco com a cena que avisto lá em baixo, no início da escadaria. Um homem idoso subindo a custo, degrau a degrau, carregando consigo um carrinho de compras, desses que têm duas rodinhas, com mão esquerda, degrau a degrau, desde o primeiro e, imagino, até este último onde ponho os meus pés.

Desço as escadas, com pressa. Ao ouvido, o Gabriel pergunta-me se pode tirar

— só algumas moedas, pai,

da gaveta do aparador da entrada, porque

— tenho fome, o almoço foi peixe com batatas cozidas, só comi o pudim,

e quer ir ao supermercado comprar alguma coisa “boa”, diz ele, para comer. Apetece-me mandar-lhe dar uma grande volta. Lançar-lhe impropérios. Ou simplesmente dizer, com a agressividade que me rói por dentro, “vai-te lixar, Gabriel; mais logo conversaremos sobre o teu comportamento na escola”. Não o digo. Respiro fundo.

Pedido de ajuda silencioso

Num instante aproximei-me do velho com as suas compras e a sua bengala. O Gabriel dizia

— ó pai, sabes,

quando o despachei

— já te ligo, vá lá, já te ligo,

parado lado a lado com o velho, observando-o, ele com a mão esquerda enrugada pousada na pega do carrinho de compras, a direita apoiada na bengala, o corpo dobrado, queixoso de dores, ainda assim silencioso. Sei o que devo fazer. Hesito se o posso. Tenho pressa. Muita pressa. Mas decido-me. Passo entre os intervalos dos corrimãos já com a mão estendida para o carrinho das compras. Digo

— bom dia, deixe-me ajudá-lo,

por educação e para cortar o gelo. O homem não se incomoda. Pelo contrário. Age como se ansiasse a minha intervenção. Como se me tivesse pedido ajuda e agora eu estivesse apenas a corresponder ao seu pedido. Estranho. Por que razão não verbalizou? Claramente precisava de auxílio.

A minha filha arranjou um homem

Subo as escadas ao ritmo do idoso. Muito devagarinho. Com pausas frequentes para ele descansar. Vou desmarcar a reunião com o diretor de turma do Gabriel. Já não chegarei à estação a tempo de apanhar o comboio. Nem este nem o próximo.

Pergunto-lhe,

— quantas vezes por semana tem de subir estas escadas?

O coitado responde-me, primeiro com dois dedos levantados, depois com a palavra “duas”. Esbugalho os meus olhos de tal modo que, acredito, o homem sente a necessidade de se justificar. Conta-me que a sua filha, única, viveu aqui perto dele até há duas semanas atrás, altura em que se mudou para a outra margem do rio, cerca de cinquenta quilómetros distante.

— Enquanto esteve aqui, ela fazia-me as compras. Todos os domingos, ia de carro ao supermercado e trazia o suficiente para eu me virar durante a semana. Mas, na semana passada, ligou-me, disse-me que arranjou um homem e que ia viver com ele, por isso já não me poderia ajudar com as compras. Eu, como não tenho carro, nem sequer posso conduzir, que remédio tenho senão fazer este caminho pelo menos duas vezes? Com ela longe, o quê que eu posso fazer?

Estamos no último lanço de escadas. Parados. Uma vez mais. O velho descansa, resignado. Retoma o fôlego. Continua.

— Ainda por cima ando com tantas dores deste lado do corpo, aqui, isto tudo, porque o raio do médico mandou-me parar com os medicamentos para as dores, agora receitou-me mais outro comprimido para a cabeça, não tenho andado lá muito bem, quase não durmo, diz que não posso tomar os dois remédios ao mesmo tempo, tirou-me o das dores e agora tenho todo este lado que não posso…

Penso-me como pai. E, em nova retoma da subida dos degraus, questiono-me sobre o compromisso entre pais e filhos e vice-versa. Estará o Gabriel obrigado a apoiar-me na velhice? Coloco a questão ao velho, que diz,

— eu fiz a minha parte. Se a minha filha entende que não tem de cuidar de mim, o quê que posso fazer?, ela não é obrigada, não pediu para nascer.

Nos seus olhos vislumbro duas lágrimas que ele se apressa de secar com o punho da camisola da mão que traz livre. Com a mesma mão, segura-me o braço direito, abranda o passo, pára, diz-me muito calmamente,

— só tenho pena que a minha filha não me inclua na vida dela, agora que arranjou um homem. O quê que lhe custava trazer o namorado? Ela não tinha de vir sozinha, podia trazê-lo aos domingos, vinham os dois, íamos os três às compras. Faziam-me companhia.

Neste momento sei o que devo fazer. Agradeço ao velho pelas palavras. Pela companhia. Pela luz que me trouxe. Quando chegar a casa, procurarei saber do Gabriel o que é que o tem incomodado. Sem saber como ou porquê, esta subida com o velho fez-me compreender que o meu filho tem vindo a pedir ajuda, silenciosamente. Como pai, tenho o dever de o escutar, e ajudar. Vou direto para casa.

Continue com Didier: “O pai não pode faltar mais ao trabalho”


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

comboio: no Brasil, falamos trem.

facto: grafia local para fato.

lanços: grafia local para lances

telemóvel: smartphone, celular.

em baixo: no português de Portugal, a palavra “embaixo” não existe.

vai-te lixar: expressão para mostra descontentamento, algo como “não me aborrece”.

mais logo: daqui a pouco, no mesmo dia.

camisola: não é a peça íntima feminina, mas sim uma camisa ou casaquinho de manga comprida.

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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