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“Porque tens Tinder”, um conto de Didier Ferreira
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Quando ele chegou, imaginou que a receção pudesse ser diferente. Havia percorrido nem metade dos trezentos e quarenta e quatro quilómetros quando Júlia começou a dar sinais de insegurança. Então a dúvida instalou-se-lhe no espírito. Estremeceu. Pensou “e agora?” Mas rapidamente voltou às mensagens que trocaram no dia anterior. Percorreu com o dedo o visor do telemóvel até chegar ao princípio da conversa. Leu

“Bom dia”,

e sorriu. Sorriu como quem pensa numa pessoa amada. Sorriu, mais pela forma como ela escreveu

“Bom diaaa”

do que pela saudação em si mesma. A alegria de Júlia sempre o contagiou. Desde aquele dia em que ele acordara mal humorado e cansado de tudo. Era uma sexta-feira. Ligara para o trabalho a avisar

— hoje não vou, sinto-me doente

que ficaria em casa. Sem ter o que fazer, aborrecido, abriu a aplicação do Tinder e, entre várias mensagens, descobriu o Bom diaaa de Júlia. Gostara das imagens. Adorara a sensação de alegria transmitida pelas fotografias. O sorriso. O olhar pacífico. O nome semelhante. Mas, o Bom diaaa apanhou-o desprevenido. E não soube como conter a alegria despertada por cada palavra a mais que Júlia escrevia. Ele respondia, sorrindo tontamente. Ela metia-se com ele, provocava-o, queria saber dele, brincavam. E, sem que Júlia o soubesse, Júlio desejou desde aquele dia voltar a despertar todos os dias da sua vida com aquela sensação boa que Júlia fazia brotar de dentro dele. Rapidamente deixaram de falar por via do Tinder.

É verdade, nem sei o que fazes

O comboio segue a sua marcha em alta velocidade. Júlio continua a reler as mensagens da véspera.

“Já te disse que te acho bonita?”

“Não, hoje não”

“Mas é que és bonita, menina. E — nunca pensei dizer isto a alguém — gosto tanto de te ver, mesmo quando ficas de cara fechada, sem sorriso”

“Para além de difícil (tal como tu) Sou séria, seríssima”

“Ah, essa parte da seriedade está totalmente comprovada. A cara não engana”

“Vais ter tempo de comprovar a parte da difícil, dificílima então”

“Será já amanhã”

“Por falar em amanhã… estou a ver se consigo a segunda aqui na empresa (não está fácil) Regressas quando?”

“Posso voltar na segunda. É verdade, nem sei o que fazes (ou não lembro)”

“Sou comercial numa empresa de consultoria financeira”

“Gostas do que fazes?”

“Gosto sim, principalmente da parte do contacto com as pessoas e de ter um ‘horário livre’”

Conversaram todo o dia, ininterruptamente. À noite, já depois da primeira despedida, Júlio escreveu

“Agora sim, até amanhã”

e só então se deu conta de que nunca ouviu a voz de Júlia. Nem ela ouviu a sua. Comunicavam exclusivamente por mensagens escritas. Faltava-lhe, portanto, descobrir na mulher que o encantava outras camadas, outros sentidos. Não se importou. No dia seguinte, hoje, saberia quem é a mulher que de há uma semana para cá o tem alegrado sobremaneira.

MAIS DE DIDIER FERREIRA

“Um dia, seremos também velhos”

“Não és bem vegetariano”

“Tem como me ajudar a ligar a máquina?”

Um silêncio na distância

Júlio sorria como há muito tempo não acontecia. Mesmo quando trocavam mensagens com palavras banais. Ainda quando aprofundavam temas e ele partilhava com a cada vez menos estranha as suas maiores dificuldades, o stress que o vinha impedindo de dormir cinco, seis horas seguidas por noite, o receio de finalmente assumir maiores responsabilidades na empresa, a solidão. Falavam abertamente. De tudo. E em todos os momentos sentia-se leve. Tranquilo. “Feliz”, como confessava a si mesmo.

Porém o sorriso esvanecia-se-lhe paulatinamente do rosto conforme recebia novas mensagens de Júlia. Quando ela escreveu

“Como estamos?”,

após um longo silêncio, Júlio não imaginou que o que se seguiria seria assustador. Sem querer, desviou o olhar para o pulso direito e descobriu a hora marcada no visor do relógio. 14:13. Ergueu a cabeça muito lentamente. Voltou-a para o lado esquerdo. Perdeu-se no horizonte onde uma casa, ao longe, isolada, como que abandonada de tão sossegada, sem movimentos em redor, nenhum carro estacionado à porta, nenhum corpo repousando na cadeira depositada no alpendre, sem crianças correndo à solta. Era uma casa verdadeira, mas tão distante da realidade. Tal como ele,  atravessando o tempo, encurtando distâncias, buscando por uma Júlia que, talvez, não soubesse sequer quem seria. Mas àquela hora viajava tão solitariamente quanto a casa na pradaria. Não tinha recebido ainda uma comunicação de Júlia. Um silêncio enorme os separava, por muito que a distância se encurtasse.

“Estou cada vez mais perto de ti”,

escreveu à amiga, que respondeu, logo de seguida,

“Que pressão”,

e continuou a redigir qualquer coisa mais, conforme os três pontinhos no canto inferior direito do ecrã sinalizavam. Júlia escrevia. Júlio esperava. Não, ela desistiu de o fazer. As reticências desapareceram. Júlio quis dizer-lhe que muito brevemente haviam de se abraçar. Finalmente. Mas nunca chegou a fazê-lo, porque Júlia tornava a escrever. Ele aguardou. Aguardou. Via a dança dos pontos enquanto esperava. 15:56. Os pontinhos desapareceram.

Por que eu?

Quando ele chegou, imaginou que a receção pudesse ser diferente. Júlia não estava lá. Não lhe atendia o telefone. Não deixou uma mensagem. E a cidade pareceu-lhe triste, sombria, toldada de uma desilusão enorme. O relógio pendurado no alto da parede da estação marcava dezenove horas e trinta minutos. Júlio sentiu o peso de cada uma das três longas horas em silêncio. Pensou “e agora?” vezes sem conta. Até que desistiu e, numa marcha lenta e pesada, dirigiu-se ao balcão da bilheteira, pediu

— um bilhete para o próximo comboio para Lisboa

e aguardou pela resposta

— o último sai daqui a cinco minutos, quer esse?

que o pôs a correr para a plataforma de embarque na linha sete. Três minutos depois, ei-lo aqui ocupando o seu lugar. O comboio inicia a marcha, muito lentamente. Chega à primeira estação. Júlio observa em silêncio os demorados e fortes abraços de despedida, os beijos ternos e os apaixonados, agora os movimentos das mãos repetindo-se do lado de cá e do lado de fora. O  revisor, indiferente, que encerra as portas e o comboio que retoma a sua viagem.

Uma senhora chama a atenção do homem sentado ao seu lado com três cotoveladas ligeiras. Aponta com o movimento da cabeça na direção de Júlio, que recolhe com a ponta do dedo indicador direito um fio de água escorrendo do olho direito e com as costas da mesma mão esfrega agora o outro lado da face. Ninguém reconhece a casa isolada na pradaria. Nem Júlio se importa já com ela. Só quer saber “porquê, por que é que ela agiu assim. Que ao menos tivesse a coragem de explicar porquê”.

Convencido de que merece uma resposta, Júlio pensa numa última tentativa. Retira o telemóvel do bolso, desbloqueia o ecrã, abre a aplicação de mensagens, escreve. Pousa-o sobre a perna direita. Olha para o horizonte. Nada. A noite caiu e a escuridão instalou-se por inteiro. “Onde mesmo é que eu tinha visto a casa?”, pergunta-se, baixinho, quase sem mover os lábios. Pega novamente no telemóvel, está a colocá-lo no bolso quando vibra. É uma mensagem nova. No visor, o nome de Júlia desaparece e surge escrita uma mancha de texto. Júlio lê

“Acordei e dormi mal, muito calor E hoje é sábado, aos sábados sofro dos nervos Então não conseguia falar contigo Acreditas que parti uma unha?! Isso deixou-me nervosa, muitíssimo nervosa. Agora não me apetece falar contigo”

e fica aborrecido, primeiro; depois, irritado, escreve

“Tens um mecanismo de defesa perigoso. Porquê eu?”

e obtém como resposta

“Porque és tu quem vem ter comigo És tu que conheci há apenas uma semana E porque tens Tinder Não me faças mais perguntas Até já”

Continue com Didier: “Alguém para estar comigo de verdade”


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

receção: recepção

telemóvel: celular, smartphone.

aplicação: aplicativo

comboio:  trem 

contacto: contato

ecrã: tela

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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