Olhar que se demora
Crianças nos desafiam a pausar o julgamento e enxergar o que está por trás da fala atravessada, da resistência, da inquietação

Não sei se você já teve a chance de refletir sobre isso, mas, na verdade, nosso primeiro olhar geralmente nem é nosso. É da cultura. Foi programado. É automático e frio. Se fez na base das neuroses e das dores dos adultos que nos criaram, que também foram vítimas de outros adultos que só conheciam o primeiro olhar…
Olhamos a brincadeira e vemos bagunça e sujeira. Olhamos a diversão e vemos risco e desordem. Olhamos a curiosidade e vemos intromissão e falta de educação. Olhamos uma vontade forte e vemos birra e desobediência. É implacável. Porém, quando olhamos com olhos de ver, ou seja, quando damos a chance do segundo olhar, tudo pode ficar diferente…
Menos julgamento, mais compreensão
Deixe-me explicar melhor. Diante da brincadeira, vemos o desenvolvimento da criança. Diante da diversão, vemos alegria e leveza. Diante da curiosidade, vemos aprendizagem e interesse. Diante da vontade forte, vemos liderança e potência – que, se bem conduzidas, melhoram o mundo. Em todos os casos, olhando cuidadosamente, vemos os convites da vida: brinque mais, divirta-se mais, aprenda mais e queira mais!
A vida é muito curta para ser pequena. Gosto dessa afirmação porque ela nos lembra do que, na correria dos dias, costuma passar batido: o fato inegável de que as crianças merecem o nosso segundo olhar. Aquele que não se apressa em julgar. Não é afoito em corrigir sem compreender a totalidade da situação. Não apaga a iniciativa infantil, muito ao contrário, a ilumina. Não se apressa em moldar ao seu capricho, mas deseja conhecer a alma singular da criança que tem diante de si.
A curiosidade do adulto pela criança muda a perspectiva
O segundo olhar não é viciado em ver problemas, mas tem tempo de ver possibilidades. Não enxerga crianças difíceis, mas necessidades não atendidas. Não pune comportamentos, mas pergunta: “O que será que ela está tentando me dizer com isso?”
O segundo olhar é o olhar da presença. É aquele que se demora. Que se doa. Que se abre. É o olhar que vê por trás da fala atravessada, da resistência, da inquietação. É o olhar que encontra e resgata a criança que fomos, e com ela aprende a acolher a criança que temos.
Porque educar com o segundo olhar não é sobre controlar, mas sobre conectar. Não é sobre impor, mas sobre guiar com respeito. Não é sobre formar uma criança perfeita, mas sobre formar uma relação segura. E, quando mudamos o olhar, tudo muda: a criança floresce, e nós também.
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