O que faço com tudo que eu sinto?
Cadê aquele amor imenso que eu carrego por esse ser que eu pari ou criei?

Tem dias em que o amor que a gente sente por um filho parece insuficiente. Não porque ele diminuiu, mas porque está cercado de raiva, frustração, medo, cansaço, tudo embolado, tudo acumulado embaixo da pele como se bastasse um olhar atravessado para fazer a represa transbordar.
E às vezes transborda mesmo. Não como chuva fina que molha aos poucos, mas como uma tempestade que arranca tudo do lugar.
É nessa hora que a gente se pergunta: cadê aquele amor imenso que eu sinto por esse ser que eu pari ou criei? Porque o que eu estou sentindo agora não é bonito. É feio, é pesado e o pior: é contra ele. Muitos pais procuram livros, cursos, vídeos que ensinem como lidar com os filhos.
Como conversar com um adolescente que se tranca no quarto, abordar uma filha que não se abre, responder a um filho que mente, fazer um combinado ser cumprido sem guerra, ajudar alguém que parece não ter noção de perigo mas quase ninguém fala sobre como lidar com tudo o que a gente sente diante disso tudo?
Antes de olhar o comportamento deles, olhe para o seu
Porque a verdade é que, por mais que amemos, nossos filhos nos ferem, não de propósito, mas porque crescem, porque se afastam, porque nos confrontam, porque espelham o que a gente não sabe lidar dentro da gente mesmo.
E nós ferimos também com palavra impaciente, com um grito atravessado, com um silêncio frio, com um olhar de decepção e logo depois vem a culpa, como se o amor tivesse sido engolido por um monstro interno que mora em nós.
A ciência explica parte disso. Nosso cérebro, quando está sobrecarregado emocionalmente, ativa o modo de sobrevivência: o cérebro reptiliano. Lutar, fugir ou congelar nesse modo, é como se não tivéssemos acesso ao nosso lado mais racional e adivinhe? É aí que estamos quando gritamos, quando explodimos, quando dizemos coisas que depois juramos que não sentimos.
Mas sentimos, sim. Não somos monstros, somos humanos e humanos amam, mas também se frustram, se decepcionam, se sentem impotentes. O problema não é sentir raiva do filho. O problema é não saber o que fazer com essa raiva.
Educar alguém é um convite diário à autoeducação, e quando esse alguém é um adolescente, o convite vira desafio porque eles testam, desafiam, confrontam, se calam.
E não é por mal, é porque estão se tornando, porque precisam se separar, porque o cérebro deles está em plena obra, um caos de fios sendo religados, emoções intensas, impulsividade, senso de justiça afiado e controle emocional em construção.
A neurociência chama isso de poda neural e neurogênese. Eles não têm, ainda, maturidade para segurar a onda sozinhos. Precisam de um adulto que não se afogue.
Como ser esse adulto quando você também está no limite?
Talvez a resposta esteja em parar de procurar uma receita de como agir e começar a perguntar: “como eu estou?”. Em vez de focar só no comportamento do filho, olhar para o nosso estado interno. Porque, muitas vezes, o que a criança ou o adolescente faz aciona algo antigo em nós. Um abandono, uma rejeição, uma cobrança, uma dor mal cicatrizada e então…
Não é mais sobre o filho que não cumpriu o combinado, é sobre o medo de não estar sendo respeitado.
Não é sobre a filha que se trancou no quarto, é sobre o pavor de perder o vínculo.
Não é sobre o filho que mentiu, é sobre a dor de ter sido enganado no passado por alguém.
A criança faz uma coisa, mas o adulto sente outra e o conflito mora nesse desencontro. Por isso, antes de agir, precisamos aprender a nos escutar. Respirar fundo, sair da urgência de resolver, nomear o que sentimos: “Eu estou com raiva.” “Eu estou magoada.” “Eu estou com medo.”
Não como quem se julga, mas como quem se acolhe. Quando conseguimos fazer isso, ainda que por um instante, algo muda. O cérebro começa a sair do modo reativo e volta ao modo reflexivo, a amígdala cerebral desativa o alarme, o córtex pré-frontal retoma o comando e então podemos agir com mais presença, com mais escolha, com mais humanidade.
Transformando esse medo em presença e conexão
Educar é uma dança em que, às vezes, vamos acertar o passo. Outras vezes, vamos pisar no pé de quem amamos. E o mais importante nesses momentos não é fingir que nada aconteceu, é pedir desculpas, é mostrar que adultos também erram, mas estão dispostos a se responsabilizar. Isso ensina mais do que qualquer discurso.
Se tem uma coisa que os filhos, especialmente os adolescentes, precisam, é de adultos que não se fingem de perfeitos, mas que estão inteiros ali não para controlar, mas para sustentar, não para impor, mas para escutar, não para corrigir, mas para amar mesmo quando doer.
Eles não precisam de pais que nunca sentem raiva, precisam de pais que saibam o que fazer com essa raiva, que saibam nomeá-la, atravessá-la, transformá-la em presença e talvez seja isso o mais difícil de tudo: não deixar o amor sumir no meio do caos. Mas o amor não some, ele só se esconde e basta um instante de escuta, uma palavra sincera, um gesto de recomeço para que ele reapareça.
A gente não vai dar conta de tudo, mas pode dar conta daquilo que sente e, aos poucos, aprender a acolher o outro a partir disso. Talvez, no fim das contas, educar um filho seja a mais intensa e transformadora forma de autoconhecimento que existe. Porque, para cuidar de um outro ser em construção, precisamos antes cuidar da nossa própria obra inacabada.
Para ler: Eu escrevo todos os meses em Vida Simples, mas se você quer acompanhar conteúdos que não aparecem por aqui, eu mantenho uma curadoria do que escrevo em meu site Correnteza no Substack. Separei três posts especialmente para você:
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Obrigada por estar aqui e até o mês que vem!
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