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Nossas lágrimas sorridentes
Foto: Tatiana Valença
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Tudo é grandioso em Tempo Rei, show de despedida de Gil das grandes turnês. Aos oitenta e dois, ele ostenta vigor, tesão pela vida, disponibilidade para dialogar com multidões e a musicalidade extraordinária que fizeram dele um orixá vivo.

A experiência de estar ali, ao lado dele e de milhares de pessoas que representam o amor do Brasil por um de seus maiores filhos, é mais que inesquecível: a emoção fica “terremoteando” as vísceras dias a fio, entre vigília e sono, entre silêncios e palavras que precisam sair de um único jeito: superlativamente.

Eu estava ali, na pista, rodeado de gente vivendo um fenômeno parecido: chorávamos sorrindo, gargalhávamos às lágrimas, a boca meio sem saber se côncava ou convexa. O mais respeitoso ato ambivalente sobre uma despedida daquela magnitude. O mais honesto manifesto emocional, nada linear e puramente dialético, paradoxal. Integrei polos que se opunham num mesmo corpo que dançava e ficava atônito, que escutava e cantava, que fechava os olhos e queria tudo perceber.

Grandes fenômenos da vida nos deixam assim: à beira de um abismo interno, sem bordas, entregues ao que pode ser incompreensível para nossa mente que insiste em binarismos (mente–corpo, razão–emoção, dentro–fora, despedida–reencontro).

História de uma vida, de um artista, de um país

Gil nos convidou a um banquete dos sentidos, a uma integração afetiva com a história inteira de uma vida, das vidas de um país, de um tempo rei que ele mesmo criou e do qual é criatura. No palco, uma espiral de LED comunicava frases antológicas de suas canções, metaforizando o avesso do tempo linear.

Como espirais, podemos subir para um retorno ao passado, retroceder supostamente indo para o futuro, em processo contínuo de desenvolvimento, jamais longe ou perto de nenhum tempo interno.

A música de Gilberto Gil é atemporal e imortal

Ela transcende o conceito de “antigo” e “contemporâneo”. Rasgos nesta ideia de tempo são fundamentais para desconstruirmos as separações racionalistas que nos atrapalham a viver. Porque de fato somos céu azul que chove num instante, somos impulsividade recheada de previsíveis ações repetidas. Somos rio e pedra, somos lágrima e sorriso, somos despreparo e propósito assertivo.

Gil é o mestre que nos ensina tudo isso: normalizemos sentimentos ambivalentes, relacionamentos que também trazem desconfortos e que podem se manter sem que sejam perfeitos, imagens turvas que digam mais de nós do que céus límpidos.

Sorrir e chorar ao mesmo tempo é assumir a amálgama estranha de que somos feitos.

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Retorno ao encantamento

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