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“Ele é uma mulher tão linda”, um conto de Didier Ferreira
Nastya Dulhiier
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Estávamos sentados à mesa, na nossa boa disposição. Comíamos arroz de pato, da Maria; arroz com feijão preto, picanha grelhada e farofa cozinhados pela pastora principal, esposa do pastor João; empadão vegetariano e moamba de galinha com funge feitos pela minha mãe. Havia aperitivos. Salgados. Queijos e outras entradas. Uma sopa, que alguém se lembrara de levar para as crianças, não para os adultos, mas que elas evitavam a todo o custo, porque encher os estômagos de sopa não lhes pareceu nada bem quando na mesa abundavam comidas mais saborosas, batatas fritas, por exemplo. À criança do meu lado esquerdo, apertada nos braços da sua uma mãe, cada colher enfiada à bruta na sua boca sabia a castigo. Fazia caretas. Virava a cara para um lado e para o outro.

— Para. Já. Com isso!

Esperneava. Agitava o corpo num contínuo movimento violento e involuntário dos músculos do tronco até que

— para com isso!

ouviu e sentiu a dor crescente, crescendo, e fez silêncio de repente porque os olhos esbugalhados viram novamente a mão pesada da mãe no alto, pronta para arrear novamente. A criança calou. A mãe encostou-lhe a mão aberta à face, murmurou palavras ameaçadoras num dialeto que não entendi de que país, baixou a mão, levou-a à colher abandonada sobre o prato, encheu-a de sopa, pô-la diante da boca da criança que a abriu e recolheu todo o creme em silêncio. Olhei para os lados. Ninguém se manifestou. Como se não notassem aquela ação violenta. Então lembrei os versos do heterónimo de Pessoa. “Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos. Se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores.” Busquei os olhos da Maria. “Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre.” A criança adormeceu ao colo da mãe. A festa continuou, com a Maria sentada bem à minha frente, mastigando lentamente uma fatia de bolo, derretendo na boca o gelado Viennetta de sabor a menta, bebendo Pepsi-Cola, falando comigo,

— obrigado por teres vindo,

debruçada sobre a mesa, como que para estar mais próxima de mim,

— temos de combinar qualquer coisa,

para confidenciar segredos que eu ansiava ouvir faz tempo ou ouvi-los da minha boca, eu que raramente aparecia na igreja e via nisso um obstáculo a uma maior convivência entre nós, sobretudo quando ela me questionava

— quando é que vais começar a vir ao culto de domingo e a frequentar os grupos de quarta-feira à noite? Gostava muito que fizesses parte da nossa igreja,

e eu respondia com um sorriso tonto e palavras trémulas. Dizia,

— quem sabe um dia.

Vem aí uma pessoa estranha 

E nesse dia alguém irrompeu em alvoroço na sala onde já poucos de nós restavam. Estávamos, os  homens, sentados numa amena cavaqueira. As mulheres, entre a sala e a cozinha, levando loiça suja, trazendo a limpa, varrendo o chão, guardando restos de comida, rindo umas com as outras na azáfama da limpeza. Quem chegou trazia consigo uma nova. Ouvimo-la dizer, quase aos gritos,

— venham, venham, vem aí uma pessoa estranha,

e o pastor, buscando sossegar a mulher que ainda há poucos minutos tinha se despedido de nós, levando consigo um saco de plástico fechado com um tupperware dentro nas mãos, pediu-lhe que falasse devagar, que explicasse

— o que é que te aconteceu, irmã?,

mas ela, exaltada, resfolegando como quem para depois de uma doida correria, com o corpo semi curvado, as mãos sobre os joelhos, as pernas bastante afastadas, o peito subindo e descendo impetuosamente, uma gota, outra gota, mais outras tombavam-lhe da testa e da ponta do nariz, e ela somente dizia, mais a sussurrar do que articulando palavras audíveis,

— venham ver, venham rápido, ela vem para aqui…

O pastor João pôs-se ao lado da mulher, curvado como ela e com o braço esquerdo enlaçado sobre os ombros dela. Murmurou qualquer coisa. Ela respondeu no mesmo tom secreto. Então ergueu-a, trouxe-a a passos lentos até nós, sentou-a numa cadeira que a pastora dispusera encostada à parede. Outra mulher pôs-lhe na mão um copo de plástico com água com açúcar quando Josué parou na entrada da igreja e todos a olharam com atenção.

— É ela,

disse a mulher sentada com o dedo apontado para a sombra sob o umbral da porta principal da igreja.

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Era uma silhueta de mulher. Ampulheta. Forma sólida exuberante recortada do contraste de luz. Parada. Assim ficou uns segundos à porta. Tempo suficiente para admirarmos os ombros e os quadris na mesma linha, a cintura fina acentuada por uma mão pousada na anca. Não se lhe via o rosto. Era só sombra. Um perfil de violão impondo-nos um silêncio constrangedor. Até que ela avançou. Caminhou para o interior da igreja afastando-se da luz brilhante lá de fora. Contei três passos até ver-lhe as botas. Pretas. De salto e cano altos. Maria estava ao meu lado. O braço direito roçando no meu braço esquerdo. Exalava um perfume cujo aroma tão bem eu reconhecia. Tinha-lho ofertado hoje mesmo. E ela, a aniversariante, borrifou-o nos pulsos, mas não sem antes esboçar semelhante estupefação

— é p’ra mim?!

perante o meu gesto inesperado e a presença de Josué

— meu deus, que mulherão,

disse ela, de olhos postos nas coxas grossas da mulher de peito liso e barriga lisa, vestida de mini saia justa, de cor preta, e corpete vermelho. Vimos Josué aproximar-se cada vez mais ele. De cabelos longos e ruivos, rosto maquilhado com glamour, pestanas enormes, sobrancelhas bem delineadas, simetricamente alongadas, pintadas de marrom. Reparamos na barba curta com laterais finas aparada com cuidado. E como baixou a cabeça, dando sinais de recuar, evadir-se de nós, quando a mulher sentada na cadeira verbalizou

— eu disse, é uma pessoa estranha,

e os meus olhos vislumbraram nos rostos dos fiéis uma espécie de concordância inabalável com o dito. Josué deu alguns passos para trás. Voltou-se. E então naquele dia testemunhei o Pastor João pousar a sua mão no braço de Josué e murmurar qualquer coisa inaudível, Josué virar-se para ele e dizer algo imperceptível, os dois abraçarem-se e Maria pronunciar para si mesma

— é uma mulher… tão linda.

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