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A modéstia virou performance? Ou morreu de vez?
(Foto: Unslash) Narciso não morreu afogado. Ele viralizou. E está entre nós, em cada postagem ou selfie
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O que veste? O que come? Como anda, como fala? Assim deveria ser – ou parecer – a tal da modéstia. Mas, honestamente: alguém já viu essa criatura ao vivo? Eu nunca. Talvez a modéstia seja como duendes, ETs ou quem tem uma noiva robô: todo mundo ouviu falar, mas ninguém conhece de verdade. Ou, quem sabe, virou o unicórnio das virtudes: todo mundo quer, ninguém encontra.

Enquanto isso, seguimos vivendo numa espécie de epidemia do narcisismo: um (auto)culto diário, muitas vezes fervoroso, outras tantas inconsciente, mas sempre presente. Narciso não morreu afogado. Ele viralizou. E está entre nós, em cada postagem, em cada selfie cuidadosamente inclinada, em cada bio que proclama com entusiasmo tudo aquilo que somos, que queremos ser ou que fingimos ser. Hoje, até quem se diz low profile não resiste: posta a legenda avisando que não quer aparecer.

Não é à toa que política e entretenimento tornaram-se uma espécie de religião contemporânea: rituais performáticos, líderes e celebridades carismáticos e, claro, exércitos devotos, dispostos a defender seus ídolos – ou a si mesmos – a qualquer custo. É a era da autoidolatria sem crítica, do espetáculo ininterrupto do eu. Aliás, talvez nem precisássemos ser tão vocais sobre nossas supostas virtudes. O que não dizemos de nós, o outro gritará. As qualidades reais, quando existem, se fazem perceber – espontaneamente, quase sem esforço, como quem entra numa sala e silencia os ruídos só pela presença.

Por trás desse movimento está uma confusão antiga entre autoestima, narcisismo e… modéstia. Desde a filosofia clássica, a modéstia foi entendida ora como virtude civilizatória – uma contenção das paixões para preservar a convivência –, ora como qualidade moral desejável: um antídoto contra a arrogância. Aristóteles falava da megalopsychia, a magnanimidade: a virtude de quem sabe o próprio valor e, justamente por isso, não precisa gritá-lo aos quatro ventos.

Com o tempo, especialmente a partir do Iluminismo, a modéstia começou a ser vista como um obstáculo: um resquício da repressão religiosa, uma limitação à realização plena do indivíduo. Freud, claro, entrou no meio do caminho, associando os excessos narcísicos à neurose e à loucura, mostrando que o amor por si mesmo, quando desenfreado, pode se transformar numa espiral delirante.

E cá estamos, no século 21, com a modéstia relegada a uma nota de rodapé nos manuais de etiqueta, enquanto o narcisismo ganhou status de valor supremo – ou, pelo menos, de algoritmo hegemônico. Mas talvez o mais interessante seja perceber como, nesse cenário, a própria noção de loucura também se transformou. Se antes a loucura era o que desafiava as normas sociais, agora é, paradoxalmente, o que mais se estimula: ser – inquestionavelmente – “honrado”, “do bem”, “inovador”. Só não vale ser… modesto.

A verdade é que até mesmo os “modestos” querem ser os melhores nisso. Penso em São Francisco de Assis (perdoem a heresia): não se contentava em ser pobre – queria ser o mais pobre dos pobres. O primeiro da fila do despojamento. Uma espécie de campeonato silencioso da humildade, que talvez só confirme: até a modéstia, quando assumida como projeto, vira – ou corre o risco de virar – performance. Afinal, até a renúncia pode virar vitrine

Eu, obviamente, não escapo disso. Durante muito tempo, transformei minha sensação de ser diferente, deslocada, numa espécie de caricatura: como se ser “normal” fosse um pecado, uma rendição ao tédio coletivo. E, claro, como toda caricatura, isso acabou me enrijecendo, me limitando e – ironia das ironias – me afastando justamente da espontaneidade que eu tanto buscava.

Uma pista no belíssimo livro “Escrever é muito perigoso”

“Creio que nossa vida não é apenas uma soma de acontecimentos, mas também uma trama intrincada dos sentidos que atribuímos aos eventos. A narrativa é o elemento que faz com que vejamos o mundo de certa forma, compreendamos sua infinita diversidade e complexidade, ordenemos nossa experiência e a transmitamos de uma geração para a seguinte, de uma existência para outra”, diz a autora Olga Tokarczuk na obra.

Modéstia, talvez, seja exatamente isso: uma narrativa sóbria de si, sem a necessidade de exageros, filtros e legendas motivacionais. Um jeito de ser menos espetáculo e mais experiência. Aliás, os chineses já sabiam disso há milênios. O hexagrama da Modéstia, no I Ching, não celebra o apagamento, mas o equilíbrio. A modéstia ali é força – evita excessos, sustenta a harmonia, sabe quando avançar e quando recuar. Não à toa, a China, herdeira milenar dessa filosofia, adota na atual guerra comercial com os EUA uma postura que mais parece inspirada no hexagrama: moderação, timing preciso, avanço silencioso. A modéstia ali não é apagamento – é tática sofisticada. 

Recentemente, numa sessão de quiropraxia, aprendi isso da forma mais literal possível. Achei o terapeuta lindo de morrer, e não perdi tempo: exibi minha suposta coragem – destemida, relaxada, pronta para encarar qualquer alinhamento de coluna a seco. Até que veio a primeira torcida de pescoço – que me deixou em pânico. Entre um estalo e outro, o Adônis Oriental me explicou: tanto o excesso quanto a ausência de qualquer emoção são sinais de desequilíbrio. Ou, pior ainda, de puro desconhecimento da emoção que está lá, agindo escondida. Ou seja: fingir não sentir não significa estar em paz – só significa estar mais vulnerável ao tranco.

Vinicius de Moraes também entendeu o perigo das afirmações absolutas: “O homem que diz ‘sou’ não é”, já alertava “O Canto de Ossanha”. A modéstia, então, é a arte de não precisar dizer – e, ainda assim, ser. É curioso pensar como a simplicidade – irmã discreta da modéstia – pode gerar obras-primas. Como “Samba de Uma Nota Só”, que nasceu de uma aparente despretensão e se transformou numa das canções brasileiras mais sofisticadas e executadas no mundo. A simplicidade, afinal, pode ser tudo, menos simplória.

Quem sabe, no fim das contas, a modéstia seja só isso: uma recusa elegante ao nosso apetite insaciável por importância. Um jeito silencioso de dizer: “não, obrigado” – à necessidade de impressionar, ao exibicionismo disfarçado de autenticidade, à histeria do excepcional. Modéstia não é fraqueza. É o desprezo sereno pela necessidade de provar qualquer coisa. Inclusive… a própria modéstia.

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