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A insustentável leveza de viver
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Por conta de um seminário na margem sul do Tejo, cruzei a Praça do Comércio durante toda a semana. Saía do barco, atravessava a praça e avançava sob o arco da rua Augusta, oficialmente a porta de entrada da cidade. O mesmo trajeto que, durante séculos, fizeram todos aqueles que chegavam a Lisboa por mar. Apesar da repetição, o trajeto nunca foi monótono. Houve dias em que senti uma leveza extrema: a belíssima arquitetura tingida de amarelo com suas torres e esculturas que abraça o campo de visão; o histórico café Martinho da Arcada, frequentado por Fernando Pessoa; o quiosque de licor de ginja; as esplanadas dos cafés; o clima de festa no rosto dos turistas…

Em outros dias, fui soterrada pelo peso da história da praça. Foi nela que registrou-se, em 1640, o fim do domínio espanhol, assinalado com a morte do secretário de estado — o infeliz foi atirado da janela do palácio para a praça. Esse mesmo cenário foi transformado em escombros pelo terremoto de 1755. O Palácio Real e sua biblioteca de 70 mil volumes, documentos históricos e centenas de obras de arte — entre as quais pinturas de Ticiano e Rubens — foram completamente destruídos. Nessa mesma praça, em 1908, o rei D. Carlos e o seu filho foram assassinados…

A mesma praça, dois estados: peso e leveza. As duas faces da vida na visão do filósofo grego Parmênides que via o mundo como pares opostos: o ser e o não ser, o quente e o frio, o peso e a leveza. Apesar da pertinência, Parmênides tinha preferência pela leveza, porque ela tinha mais chances de trazer a liberdade.

Sem amarras

Desde a descoberta dessa condição, a disputa entre o peso e a leveza tem sido acirrada. No passado, o domínio tecno-econômico consagrou os equipamentos robustos e pesados como os melhores. Uma marca que ainda conservamos na linguagem. Ainda — e penso que não será por muito tempo —  dizemos que alguém “é de peso” (tem prestígio), mas também já afirmamos que alguém “é um peso” para a família (um fardo).  Porém, hoje, muito mais do que qualquer outra época, a leveza ganhou importância máxima. Nunca a leveza criou tantas espectativas, desejos e obsessões. Nunca fez comprar e vender tanto. Ela tornou-se um valor, um ideal a ser perseguido, quase uma virtude.

A demanda é ser leve, viver de forma solta, sem o peso de amarras. A recomendação é simplificar a vida, viajar com pouca bagagem e eliminar tudo que nos aproxime da terra firme. Todos clamam pela leveza e suas variações. No campo pessoal, há o elogio a magreza, as dietas detox, a desaceleração, a busca do zen, do mindfullness, do minimalismo.

A arquitetura e a arte materializam a leveza em linhas sóbrias e materiais finos. Não é mais tecnologia, agora é nanotecnologia que oferece equipamentos cada vez menores e com o mínimo de peso. Sem as amarras de fios, o wireless, são quase etéreos. Por todos os lados, a ordem  é desmaterializar. Mais do que dinheiro e felicidade, a escolha do corpo e do espírito é pela mala menos pesada. E exige-se do outro que ele “pegue leve”. Nietzsche identificou a preferência: “o que é bom é leve, tudo o que é divino corre sobre pés delicados”.

Bola de sabão

E qual é o problema? A ironia. Com todo esse arsenal de leveza, a cada dia, a vida parece mais pesada e difícil de suportar. Dizendo melhor: a busca da leveza é pesada e estamos caminhando em círculos: buscamos a leveza, encontramos o peso e, por isso, aumentamos ainda mais a nossa sede pela leveza. O primeiro que alertou para esse fracasso foi o teórico da hipermodernidade Gilles Lipovetsky. Para ele, a leveza do digital é uma ilusão. Você pode discordar ou pelo menos considerar um exagero. Afinal, não é óbvia a leveza do mundo digital.

As demoradas correspondências, entregues pelo carteiro, deram lugar a mensagens instantâneas para qualquer lugar do planeta. E melhor: nada das eternas cartas empoeiradas guardadas no fundo do baú e o peso de ser cobrado no futuro por promessas escritas e o confronto de provas concretas. Agora, pode-se trocar mensagens e fotos que se autodestroem, segundos depois de serem lidos. Tudo como uma magia etérea, um sopro de ar.

E isso não é bom? É. O problema é que essa “leveza” traz junto o peso da ditadura das respostas imediatas (“Visualizou e não responde? Por quê?”). Alguns podem dizer que a tecnologia em si não é má, basta saber usá-la. Ok. Você quer usufruir da leveza de não ser incomodado com mensagens. Não dá. A eficiência da tecnologia trouxe a impossibilidade de se distanciar, de se ausentar. Lembra o clássico “Qualquer dia eu desapareço!”? Impossível. Você pode ir para os confins do mundo, qualquer lugar tem wi-fi. A tecnologia traz a leveza da existência nômade, o “meu escritório é o mundo”, mas também é mensageira da vida em fluxo tenso, do “zero atraso” e da sensação de estar “enterrado no trabalho”.

Leve ou pesado?

É. Mas a tecnologia trouxe quantidade, leveza e agilidade para a principal busca humana: o outro. Será? Os aplicativos de relacionamentos proporcionam muitos encontros — sem compromisso. Sim, mas eles não eliminam o peso da insegurança e do medo do abandono. A tecnologia oferece um cardápio de pessoas à escolha, mas não elimina as expectativas e os sonhos de amor, nem as frustrações que daí decorrem. Ela oferece as delícias da experimentação leve, mas também o pesadelo de não ser aceito. E, por fim, o hedonismo ligeiro dos sites de namoro a exibir catálogos de pessoas, não retirou um milímetro da importância da fidelidade.

E por que é assim? Porque não existe nada leve ou pesado. Não há como experimentar a leveza doce do amor por um filho, sem o peso do dever de educa-lo. A existência etérea da borboleta carrega o peso da memória da lagarta. Eles não são contraditórios, são faces da mesma moeda, se alternam e se encontram. São parte da diversidade necessária para o equilíbrio da vida. Milan Kundera no maravilhoso livro A Insustentável Leveza do Ser — que não posso deixar de citar — personifica essa união nos personagens Teresa (peso) e Thomas (leveza).

Leveza traz capacidade para sonhar

E mesmo que fosse possível escolher. Qual dos dois é o melhor? A leveza intensifica a sensação de liberdade, mas também traz a insignificância e a dispersão. Ela não carrega malas, mas também não cria vínculos. O peso vem quando nos relacionamos, mas só nos relacionamos quando a leveza permite que sejamos tocados. O peso nos puxa para a terra, diminui a nossa agilidade, mas é esse mesmo peso que pavimenta o caminho da leveza de se rever e de se perder naqueles que amamos. A leveza traz a capacidade para o sonho, mas é no peso que encontramos o sentido da vida.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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