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A força invisível da gentileza 
(Foto: Masjid Pogung Dalagan/Unsplash) É possível ser gentil diante da raiva e da frustração do outro?
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Paira no ar a tensão de uma crise instalada. Uma pessoa berra ao celular; a impaciência domina outra ao volante; dois usuários do metrô tentam embarcar e desembarcar ao mesmo tempo; duas pessoas chocam-se na rua e se entreolham com hostilidade… As razões são muitas, mas uma salta à vista: a falta de gentileza. O fenômeno é explicado pelos especialistas como um efeito colateral do individualismo exacerbado e do estilo de vida acelerado. Não há espaço – aliás, sequer há tempo para enxergar o outro. 

Mas a pressa não é o único entrave. Há uma espécie de preconceito contra a gentileza. As boas maneiras são encaradas como algo fora de moda, falso, um verniz para esconder o que se sente. O que é um grande equívoco. Primeiro porque alguns gestos de cortesia não valem pelo seu valor concreto, são do domínio do ritual. Quando dou “bom dia” a alguém, raramente estou desejando que a pessoa tenha um dia bom, na verdade, o que digo é “estou aqui e vi que você também está”.

Aspecto cultural

O termo “grato” vem do latim “gratia” que significa “receber uma graça”, “um favor divino”. Ao dizer “obrigada” a alguém que segurou a porta do elevador, não acho que ela me concedeu uma dádiva celestial. São convenções que acolhem, demonstram respeito e facilitam o contato com o outro.

Não é sem razão que o Japão, que ainda conserva rituais milenares, é considerado o país mais gentil do mundo. O respeito pelo outro – comunicado através de gestos de gentileza – garante a harmonia e a ausência de conflito – tão valorizados na cultura japonesa. Quem não se encantou com o comportamento do Japão na Copa do Mundo? Após a sofrida derrota frente aos belgas, a seleção nipônica deixou o balneário impecavelmente limpo e uma nota de “Obrigado” – escrita em russo – para os seus anfitriões.

Um contraste brutal com os exemplos de seleções que após uma derrota parte para o quebra-quebra; ou se estão no seu próprio estádio – em casa, como dizem – apagam as luzes para impedir o visitante de celebrar a vitória.  

Seguido do preconceito, vem a dificuldade da prática. Conviver é um jogo de equilíbrios complexos: precisamos do nosso espaço e de respeitar o espaço do outro; devemos ser discretos, mas atenciosos; interessados, mas não invasivos. A todo momento corremos o risco de aborrecer e ser aborrecido, irritar e ser irritado… Mafalda, célebre personagem do cartunista Quino diz que “É muito fácil amar a humanidade, difícil mesmo é amar as pessoas.”

Amar quem está longe é fácil, amar o próximo – aquele que está na sua casa, na sua rua – ah, esse é mais difícil. 

Gentileza faz bem 

Porém, não há outra forma. A ligação com o outro faz parte da nossa natureza. Somos gregários, está no nosso DNA. Precisamos do outro e só estamos bem quando estamos bem com o outro. A experiência do acolhimento, da partilha, do afeto, da sensação de plenitude só se dá com o outro. E quando estamos mal, também é com o outro.

Cultivar atos de incivilidade abre a porta para a aspereza, para a agressão e para relações que machucam. Seja qual for o cenário, os ganhos e os prejuízos são para todos. Há uma analogia que mostra que a gentileza é semelhante a partilha. Se você tem uma vela acesa e deixa que o outro acenda a vela dele na sua, você não perde luz, o outro ganha luz e tudo fica muito mais iluminado. 

Gentileza e o autocontrole  

É possível ser gentil diante da raiva e da frustração do outro? É – e recomenda-se. A gentileza pode minimizar o conflito e criar um cenário favorável para acordos e consensos – e também pode evitá-lo.

Recentemente ajudei uma amiga a organizar a sua festa de aniversário. Entre outros assuntos, ela comentou que estava muito feliz com a sua nova moradia, o único problema era o vizinho alemão. Em quatro meses, ele havia reclamado três vezes do barulho e, em uma das vezes, tinha chamado a polícia.

Ela comentou que o vizinho era uma pessoa muito rude e tinha deixado claro que não toleraria barulho após às 23h. Fiquei preocupada. Relembrei ela que o aniversário seria no dia seguinte, portanto, cortaríamos o bolo meia-noite. Sugeri que ela deveria comunicar ao alemão. Ela argumentou que estava “na sua casa”; eu concordei, mas acrescentei que ela vivia num condomínio. Ela abriu muito os olhos, calçou os sapatos e decidiu: “vou falar com o alemão”. E assim fez. Bem… veio o jantar, veio o eufórico “parabéns”, veio o barulho… mas o vizinho não veio.  

Exercite!

A segunda dificuldade é autoconstruída. Para escapar da responsabilidade de incluir o outro – e justificar um comportamento impróprio – muitos se apegam ao “não sou falso”, “tenho personalidade forte”, “sou frontal”. Munidos dessas muletas e a menor contrariedade, partem para a vida num desespero canalha, atirando para todos os lados. Qualquer um que cruze o seu caminho é visto como responsável pelo seu mau humor, seu dia ruim e, portanto, um alvo a abater. E há muitos assim. Estão por toda parte.

Como lidar? Neutralize-os com a gentileza. E se você estiver na categoria do “definitivamente não sou afável e não me sinto confortável nesse papel” e os atos de gentileza faz com que você pareça exteriormente o que você não é interiormente. Há solução.

O homem está em construção e essa construção é feita através do exercício e da prática. Aristóteles afirma que o bom arquiteto é o que faz boas casas. De tanto exercitar, um dia a gentileza fará parte da sua personalidade. E será tão natural em você que ninguém dirá que é uma virtude recém conquistada. Pratique!

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