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A esposa perfeita do Instagram: o que está por trás da estética tradwife?
(Foto: Unsplash) Liberdade deixa de ser liberdade quando vira cobrança disfarçada de tradição
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O sol ainda nem nasceu. Ela já está de pé. Vestido longo, cabelo preso com laço de cetim, maquiagem leve, avental engomado. Na cozinha, o café da manhã é servido com capricho: ovos caipiras, pão caseiro, manteiga batida à mão. A mesa está posta com flores recém-colhidas do jardim. Enquanto as crianças dormem e o marido se arruma para o trabalho, ela sorri para a câmera e grava mais um reels com a legenda: “Ser dona de casa é a minha missão de vida. Eu nasci pra isso.”

Essa é a estética vendida pelas tradwives — abreviação de traditional wives, ou “esposas tradicionais”. Mulheres que decidiram abandonar o mercado de trabalho, os objetivos profissionais e o discurso da independência para se dedicarem integralmente ao lar. À primeira vista, parece inofensivo: uma escolha legítima como qualquer outra. Mas a pergunta que precisamos fazer é: quem está realmente escolhendo? E quem está sendo ensinada a acreditar que essa é a única escolha válida?

Por trás das receitas de forno e fogão, das saias rodadas e das legendas sobre maternidade plena, existe uma narrativa cuidadosamente construída. A mulher idealizada como submissa, dócil, recatada e exclusivamente voltada à vida doméstica volta a ganhar protagonismo — agora sob uma nova roupagem, polida pelo algoritmo.

A estética vintage do século 21

O movimento das tradwives é alimentado por um ideal que se mistura com nostalgia e conservadorismo. Ele resgata símbolos da década de 1950, quando a mulher “de bem” era aquela que cuidava da casa enquanto o homem sustentava a família. Só que agora, ao invés de figurar em comerciais de TV, essa mulher vive nos vídeos de 15 segundos do TikTok — sorrindo entre pães de fermentação natural e crianças vestidas de linho orgânico.

Quando a escolha individual vira ferramenta ideológica

Nos Estados Unidos, movimentos conservadores têm utilizado o discurso da “mulher tradicional” como solução para crises econômicas e demográficas. Durante o governo Trump, por exemplo, surgiram propostas como o pagamento de incentivos financeiros por bebê nascido, além de planos nacionais de fertilidade. O objetivo declarado: aumentar a natalidade. O objetivo implícito: reforçar o retorno da mulher ao papel de cuidadora em tempo integral.

Esse tipo de política apresenta o retorno ao lar como libertação — quando, na prática, pode ser uma forma de aprisionamento. Um aprisionamento confortável, sim, com cheirinho de bolo e aparência de liberdade, mas ainda assim, uma limitação do que se espera da mulher.

Quando uma escolha se torna exaltada como modelo ideal, as outras formas de existir passam a ser vistas como desvios. A mulher que quer estudar, empreender, trabalhar fora, não casar, não ter filhos, ou simplesmente viver com autonomia, passa a ser vista como perdida, infeliz, incompleta. E aí, a liberdade deixa de ser liberdade. Vira cobrança disfarçada de tradição.

Romantização do sacrifício feminino

Não há nenhum problema em querer ser dona de casa. O problema é vender isso como o único caminho possível para uma mulher que “se ama de verdade”. É dizer que feminismo fracassou porque algumas mulheres estão cansadas da pressão corporativa — como se as pressões do lar fossem leves. Como se o trabalho doméstico não fosse também exaustivo, invisibilizado e solitário.

A romantização da tradwife reforça a ideia de que o valor da mulher está em servir. Que a sua realização plena só existe quando ela abdica de seus próprios desejos para cuidar dos outros. Que ser uma “boa esposa” é mais importante do que ser uma mulher inteira.

A pergunta que não quer calar

Estamos realmente oferecendo mais possibilidades para as mulheres, ou estamos criando novas embalagens para as mesmas velhas imposições? O discurso da esposa tradicional vem sendo tratado como revolução silenciosa, mas a quem essa revolução realmente serve?

Se a escolha é livre, ela é bem-vinda. Mas liberdade de verdade pressupõe informação, contexto, questionamento. E sobretudo: alternativas. Uma sociedade só é justa quando uma mulher pode ser tradwife, executiva, mãe, artista ou tudo isso junto — sem que nenhuma dessas escolhas seja vista como superior à outra.

A paz da vida doméstica pode ser bonita, sim. Mas só é legítima quando nasce da consciência — não da manipulação, não da falta de opções, e muito menos da expectativa de que a felicidade feminina precisa, obrigatoriamente, passar pela aprovação masculina.

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