A cama desfeita
Sobre o descanso sem culpa como ferramenta de saúde integral

Minha cama ficou desfeita o dia inteiro. Nos últimos dez anos. Não por esquecimento. Nem descuido. Nem falta de tempo. Mas por escolha.
Colcha? Nunca usei. Prefiro aqueles lençóis que abrigam edredons fofos. Ah, e cobertores que abraçam. Preciso investir em travesseiro, o meu está murcho, coitado. Sempre que possível, priorizo um auto-agrado que me traz aconchego. Recentemente, descobri a oitava maravilha do mundo chamada pillow-top, que é uma camada extra de acolchoamento amoroso que se usa em cima do colchão para deixá-lo mil vezes mais confortável.
Ou seja, não é que estou pouco ligando para a cama. Muito pelo contrário. Cama é refúgio. E a minha, localizada entre metros quadrados bastante íntimos que atualmente não divido com ninguém, segue desarrumada afetando um total de zero pessoas.
Explico: dentre as várias multitarefas que me proponho a executar na rotina de mãe, mulher e profissional, arrumar a cama só entra na lista quando algum alinhamento astrológico me diz que esse hábito inofensivo pode desequilibrar o ecossistema interplanetário. Que me lembre, nunca aconteceu.
Há muitos argumentos sobre os benefícios da cama arrumada, eu sei: uma primeira atividade concluída com sucesso pode desencadear um ciclo orgânico de eficiência e impulsionar todo o restante do dia; a sensação de organização coopera para reduzir o stress e a ansiedade; a realização de uma tarefa regularmente aumenta a percepção de competência e potencializa a motivação; o ambiente arrumado traz impactos positivos no humor e na produtividade. E por aí vamos.
Hum. Mas e se não quero me sentir produtiva, e sim inteira? A expressão “cama desfeita” é poética, se você reparar bem. Gosto de pensar em desfazer como um ato reverso ao fazer produtivo da vida no automático.
Minha cama desarrumada abriga, então, lembretes diários importantes: nem tudo precisa atender às expectativas dos outros. E mais: é permitido descansar.
O descanso como resistência
Não sei bem quando o descanso virou um erro na Matrix. Quando dormir oito horas passou a ser coisa de preguiçoso. Quando não fazer nada por determinado período se tornou motivo de culpa. E quando “trabalhar enquanto eles dormem” se transformou em sinônimo de sucesso. O que sei é que a gente paga caro quando tenta sublimar o cansaço.
Tem dias que não é tristeza. Nem tédio. Nem doença. É só cansaço, mesmo. Somos uma geração marcada pela exaustão precoce. Um esgotamento que não passa com café. Nem com banho gostoso. Nem com playlist animada. É o físico pedindo abrigo. A alma pedindo conforto. O coração pedindo socorro. E tudo isso cabe numa cama desfeita.
Lembro de uma terça-feira em que decidi não cumprir nada da lista. Não render. Não produzir. Não responder e-mail. Não fingir eficiência. A noite anterior havia sido péssima e sentia dores em todas as esferas do meu ser, das musculares às invisíveis. Levei as crianças para a escola, coloquei o pijama de volta e corri para a cama desarrumada. Apaguei as luzes. Chorei no travesseiro murcho até cochilar de exaustão. Quando levantei, era outra. Não por ter dormido. Mas por ter me permitido existir sem meta.
(Sim, meu contexto privilegiado de trabalhar em home-office favorece esse tipo de gesto. Mas quantos de nós não nos permitimos fazer isso sequer em dias “não úteis” – se é que existe algum que seja inútil?).
Este texto não é sobre glorificar a inatividade ou cultuar a procrastinação. Ao contrário, é sobre reconhecer que o descanso não precisa ser pago com culpa. Ninguém deveria precisar justificar sua necessidade de recarregar as energias. Lembremos: até as máquinas fazem isso. O descanso genuíno nos proporciona clareza, criatividade e o impulso necessário para seguir de forma mais leve.
O mundo precisa de gente descansada. Onde estão essas pessoas? Gente que não vive na velocidade 2x do WhatsApp. Gente que sabe dizer não. Gente que escuta os próprios sinais. Gente que consegue parar antes de (se) quebrar. Gente que faz da cama um altar de retorno. Talvez a cama desfeita seja o manifesto mais íntimo da resistência contra o excesso.
Práticas para descansar com menos culpa
- Deixe a cama desfeita (ao menos de vez em quando): resista à pressão de organizar tudo. Uma cama por fazer pode ser sinal de uma pessoa que está sendo respeitada. Mais liberdade, mais bagunça, mais manhãs sem cobrança, mais sossego;
- Reduza metas em dias difíceis: não precisa cumprir tudo sempre. Escolha o essencial e deixe o resto para depois. O mundo não vai acabar se você, hoje, for um pouquinho incompetente. Mais gentileza, mais realidade, mais leveza no calendário, mais espaço para existir;
- Escute os seus sinais: travado? Dolorido? Lento? Permita-se trocar a aceleração pelo acolhimento do seu sentir. Mais termômetro interno, mais sintomas acolhidos, mais autocuidado fora da agenda, mais respeito;
- Crie um ritual de descanso: pode ser uma música baixa, uma manta leve, um chá quente, ou só o silêncio. Faça do descanso um encontro consigo. Mais vela aromática, mais temperatura boa, mais “não fiz nada e foi tudo”, mais tranquilidade;
- Não espere ocasião especial para se amar: invista em algo simples que te entregue conforto. Um cobertor macio. Um lençol de muitos fios. Um aroma que lhe faça bem. E use todos os dias. Mais conforto, mais “como não pensei nisso antes?”, mais “que delícia”, mais ufa.
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