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A aventura da rotina
Osman Rana | Unsplash
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Mais um dia estava começando. Era final de junho e fazia muito frio. Apesar disso resolvi sair a pé pelas ruas de Curitiba às 7 horas da manhã em direção ao colégio onde lecionava na época. As aulas começavam às 7h30, e o tema daquele dia seria o “Evolucionismo, a aventura de Darwin”. Às vezes eu me queixava da rotina das aulas, da monotonia da repetição dos assuntos em várias turmas. Uma vez fiz o cálculo de que cheguei a cerca de 20 mil aulas ao longo de minha carreira. Tenho orgulho disso, mas me lembro também das agruras —- entre elas, a rotina.

Entretanto, certa vez, lancei outro olhar sobre esse assunto, e parece que algo começou a mudar em minha relação com o cotidiano a partir de então. O inverno estava especialmente rigoroso. Enquanto caminhava, esfregava as mãos e puxava para baixo o gorro de lã que teimava em subir deixando as orelhas desprotegidas. Para quem foi criado na capital do Paraná, dias frios são bem conhecidos. No final do verão, os curitibanos até desejam o ar gelado e reconfortante em seus rostos.

Velhos conhecidos

Enquanto caminhava, observava a paisagem familiar à minha volta. Acostumado àquela região da cidade, conhecia bem as ruas, as árvores secas, as pedras portuguesas das calçadas. E até os transeuntes, que pareciam velhos conhecidos. A maioria usava roupa pesada, alguns daqueles casacos que, ao contrário dos ursos, hibernam no verão e acordam no inverno, cheirando a naftalina. Tudo igual.

De repente vi algo — ou alguém — diferente. Uma pessoa caminhava embrulhada em um cobertor com estampas coloridas. Dava passos decididos. E da extremidade superior da trouxinha em que havia se transformado, saía um bafo quente que condensava no ar, criando uma nuvem efêmera, denunciando a troca de gases com a atmosfera. “É isso que somos”, pensei. “Entrepostos de produtos químicos. Enquanto interagimos quimicamente com o planeta, nos mantemos vivos.” O ser que me fez pensar era quase felliniano, um personagem do teatro do absurdo que, no entanto, nada mais fazia do que se defender do frio.

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Crédito: Alexei Maridas | Unsplash

Tudo sempre igual

E foi aquele vulto que me fez pensar sobre o meu dia. Ou melhor, sobre os meus dias. Eu já tinha percorrido aquele caminho centenas de vezes. Conhecia cada loja, os porteiros dos prédios e até as imperfeições da calçada. Era sempre igual, como seria igual o meu dia. As mesmas aulas, os mesmos alunos, suas dúvidas e indisciplinas. As conversas com os colegas na sala dos professores, os assuntos de sempre, as dificuldades da carreira do magistério, os novos livros que estavam lendo e os resultados do futebol. Rotina.

“Todo dia ela faz tudo sempre igual”, cantou o Chico. “E me acorda às 6 horas da manhã”. Era eu na música. Éramos nós. Todos nós… Menos o Mick Jagger, talvez…

Mas o cobertor ambulante que exalava uma nuvem me fez repensar tudo. Eu nunca havia visto tal criatura antes — era uma novidade. Os dias que pareciam ser sempre iguais talvez não fossem tão iguais, afinal de contas. Novos personagens no palco, ou velhos personagens interpretando novos papéis, sei lá. Comecei a prestar atenção. Passei a lançar novos olhares sobre velhas coisas. O resultado? Vi detalhes que não havia visto antes, apesar de estarem ali, diante de mim, desde sempre.

O novo olhar

Durante a aula, tratei desse assunto com os alunos. Expliquei que Darwin havia criado, a partir de suas minuciosas observações como naturalista a bordo do navio HMS Beagle, no qual viajou por cinco anos pelo Hemisfério Sul, não apenas uma teoria das ciências naturais, mas um novo jeito de pensar. “O darwinismo não se limita à biologia”, expliquei. Pode ser aplicado à economia global, à competitividade das empresas, ao posicionamento dos profissionais.

Darwin, na prática, questionou a crença dogmática sobre o aparecimento da vida na Terra, incluindo a do próprio Homem. Desafiou a realidade tal como era vista até então. Aliás, o que seria a realidade?  E esse passou a ser o assunto da aula. Será que a verdade existe? O que é sempre será? Essas são algumas entre as perguntas que a alma humana se faz, para as quais não encontra respostas.

Perguntas sem respostas

Pelo menos não respostas satisfatórias. E, quando não há respostas, as perguntas acabam sendo dirigidas a ninguém e a todos ao mesmo tempo. Perguntas feitas a filósofos poderiam ser respondidas por físicos quânticos ou por biólogos com a mesma propriedade. Aliás, há áreas do pensamento que com frequência se encontram na esquina da rua da dúvida com a avenida da incerteza.

Uma das afirmações em que filósofos e físicos estão de acordo é que o olhar do observador tem o poder de modificar o fato observado. O olhar… A maneira como vemos — essa é a chave. Para modificar a realidade temos que, primeiro, mudar a maneira como a observamos. Lançamos um novo olhar e a mágica acontece. Experimente.

A rotina existe?

De acordo com Einstein (falando em físicos…) é  impossível encontrar uma solução usando o mesmo modelo mental que criou o problema. É preciso criar um novo ângulo de visão, olhar a questão com outros olhos. Aliás, esse é o papel dos consultores de empresas, ou mesmo dos psicólogos de consultório. Não só eles olham com os olhos deles, como nos ajudam a modificar o nosso próprio olhar.

Fantástico. Pois essa mesma teoria pode ser aplicada à rotina. Aliás, será que a rotina existe mesmo? Serão todos os dias iguais, ou serão nossos olhos que não conseguem ver que hoje é diferente de ontem? Será possível livrar a rotina da monotonia? Acredito que sim. Aprendi com os físicos quânticos, com os filósofos e com o cobertor ambulante da rua de Curitiba. E também com poetas, pintores e cineastas.

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Crédito: Alex Padurariu | Unsplash

Modificando lembranças

Falando nisso, vi um filme maravilhoso da jovem cineasta Julia Murat. Trata-se de uma trama lenta, ambientada em Jotuomba, uma pequena vila do interior do Rio de Janeiro que parece ter parado no tempo, imune a influências de qualquer fato modernizador do mundo. Não há mais produção de café, a ferrovia está desativada. Cada um dos poucos moradores cumpre seu pequeno papel. E, assim seguem os dias, repletos de uma imensa monotonia. Entre eles, Madalena, uma viúva, que continua acordando de madrugada para fazer os pães, que depois leva para o armazém do Antônio, onde toma com ele uma caneca de café forte na soleira da porta.

Eis que um dia aparece a jovem Rita, uma talentosa fotógrafa interessada em captar imagens do cotidiano simples com uma câmera artesanal, feita com uma lata de biscoitos. Hospeda-se na casa de Madalena, frequenta a missa, almoça com os habitantes e busca a beleza escondida na rotina interiorana. E a encontra, sem dúvida. Suas fotos são belíssimas. Só elas já valem o filme.

Simplicidade e monotonia

A maravilhosa aventura que esse filme revela é que, em sua busca pelo belo, Rita estimula as pessoas a buscarem também. E elas o fazem, e revolvem lembranças. Começam a lançar novos olhares sobre suas vidas, modificam a percepção do cotidiano, ainda que não tenham consciência disso.

Histórias que só Existem Quando Lembradas não é um filme sobre simplicidade e monotonia. É sobre o poder modificador do olhar. Não há tiros nem palavras sendo disparados em ritmo frenético. Há tempo para a observação e para o pensamento. E para a mudança do mundo interior.

Por fim, desde aquele dia frio, em Curitiba, nunca mais dei uma aula para os mesmos jovens — eles se renovaram todos os dias. Eles não sabem disso, só quem sabe é este professor, que aprendeu a aperfeiçoar o olhar e a lembrar das histórias que nunca se repetem.

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