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A arte de se encantar com a vida que se tem
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Já ouvimos à exaustão que a condição primeira para a vida boa é habitar o presente. O apelo em latim “carpe diem” está conosco desde a era pré-cristã. Extraído de um poema do filósofo e poeta Horácio — carpe diem quam minimum credula postero, literalmente, “aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã” — resume toda a ambição humana. O apelo de origem estoico-epicurista ensina que devemos aproveitar o que há de bom na vida a cada instante, já que o futuro é incerto.

Desde então, nada mudou. Continuamos a saber que essa é a melhor forma de viver. Qual é a recomendação para combater a ansiedade e a depressão? “Viva o dia de hoje”. A meditação e a yoga são prescritos como antídotos contra os males da sociedade hiperestimulada e veloz. O que pedem essas práticas: foco na respiração, concentre-se no momento presente. Qual é o livro mais vendido nas livrarias? “O Poder do Agora”.

Mas, por que, apesar desses apelos permanentes, continuamos prisioneiros do passado e do futuro? O que está errado? O que falta? Falta uma emoção fundamental: a admiração. Ela é a base do amor — seja por alguém, por uma ideia, pelo presente ou pela vida que se tem. Pode-se pensar que esse apelo, hoje, é injusto. Afinal, em plena pandemia — confinados — tudo o que queremos é fugir do presente. Como é possível não se ancorar no passado ou sonhar com o futuro? O nosso hobby hoje é imaginar o futuro. Estamos vislumbrando o encantamento de viagens, restaurantes, museus, cafés e todos os lugares que tem portas.

Admiração, essa desconhecida

Eis o primeiro obstáculo: como admirar a vida banal, rotineira, com contas para pagar? Como amar o dia de hoje quando nada acontece como gostaríamos? Como amar com cansaço, com crise e sem perspectiva? Quando pensamos numa vida admirável, nunca pensamos na nossa. Costumamos cobiçar a vida alheia. Quem nunca pensou que a sua vida precisava de um roteirista? E aqui chegamos na solução estoica. O mundo nunca vai ser como você gostaria e você não tem poder sobre ele. A solução não está na vista, mas no olhar sobre a vista. E é nessa tarefa, é para essa mudança fundamental que precisamos das emoções.

encantar com a vida

Evgenya Tamanenko (IStock)

Quando se fala sobre as emoções que tornam a vida melhor, dá-se muito destaque para a alegria e a empatia. Fala-se muito pouco sobre a admiração. O que é compreensível. O senso comum define a admiração como uma emoção agradável que se apodera de nós diante de algo extraordinário, belo ou inesperado. Porém, a admiração é muito mais do que isso. Emoção sofisticada e de primeira grandeza, a admiração tem componentes espirituais, morais e estéticos. O que não se diz, é que ela não precisa ser necessariamente aleatória, rara ou uma questão de sorte. Ela não precisa ser algo que nos acontece. A admiração pode ser racionalmente despertada e fazer parte da nossa vida de todos os dias.

Admiração pela inédito

Não usufruímos mais da admiração porque internalizamos que ela é uma emoção para ocasiões especiais, como as viagens. Julgamos que a admiração só é despertada diante de monumentos, obras de arte, natureza exuberante ou lugares paradisíacos. Qual é a emoção que está diretamente associada à mais nobre das ciências humanas, a filosofia? A admiração. Na história do pensamento, a admiração é considerada como a condição primeira da filosofia. Esse é outro equívoco: a crença de que só é possível a admiração diante do inédito, do que se revela para nós pela primeira vez. Afinal, quem se encanta com um monumento da sua própria cidade? Quem se encanta com a vida ordinária, conhecida? Só a vida extraordinária é admirável.

se encantar com a vidaEncantar-se em casa

Há duas boas notícias: a primeira é que a admiração pode fazer parte da vida de todos os dias. Segundo: ela pode ser provocada. Podemos nos admirar todos os dias e até mesmo sem sair de casa. Há uma infinidade de coisas simples, do nosso dia a dia, que tem um grande potencial de admiração. Basta estarmos atentos. Exemplo? Um livro pode ser uma fonte inesgotável de admiração. Eu me lembro que na leitura de Os Maias, de Eça de Queiroz, a partir da segunda metade do livro eu comecei a ler devagar porque eu não queria que acabasse. Mergulhada no universo queirosiano, vivia num estado permanente de encantamento e não queria sair dele. E sempre que quero resgatar esse encantamento, releio trechos da obra.

Ainda no terreno dos livros. Como aficionada pelo conhecimento, admiro imensamente novas teorias e descobertas. Leio tudo o que aparece sobre sistema imunológico. Sinto uma fascinação enorme pela capacidade engenhosa do sistema de defesa de todos os seres vivos. De acordo com estudos, a admiração proporcionada pela ciência é uma das experiências mais elevadas que a psique humana pode experimentar. Nas teorias, quando descubro um autor novo é como se eu descobrisse um novo país. Meu início no pensamento do filósofo alemão Peter Sloterdijk lançou luz em todos os conceitos que eu tinha como obscuros. Passei a ver tudo com mais lucidez. Sentia-me envolta em um encantamento que me tornava mais forte, mais segura no mundo.

Quando algo vai mal.

É fácil se encantar com a revisita a universos que nos encantaram (olha o passado!) ou com um acontecimento bom e novo em folha (futuro!). Mas e nas adversidades? Quando a vida dá uma grande reviravolta e você perde o chão. Quando tudo muda e você se vê num lugar estranho e desconhecido. Dá para lançar mão da admiração? Dá. No clássico da Disney, Branca de Neve se vê abandonada e sozinha na floresta. É noite, o ambiente é assustador. Ela tem medo e chora até adormecer. Quando acorda, olha ao redor, vê pássaros, animais e a natureza em todo o seu esplendor. E como está numa clareira, sente-se diretamente iluminada pelo sol. O que faz Branca de Neve? Recorda os últimos acontecimentos e retoma as lágrimas? Pensa no que fará de agora em diante? Não. Ela contempla a beleza do cenário, ajoelha-se e agradece o universo por ter criado coisas tão belas. Ela se alegra e o seu drama torna-se mais suportável.

se encantar com a vidaA admiração também é racional

É certo que isso não acontece por magia, é preciso um esforço do pensamento. É preciso que se diga que há um grande número de pessoas que não aprecia viagens, que não vai a museus e que detesta a natureza. Um monumento ou uma obra de arte, sozinhos, não tem o poder de nos despertar admiração, de nos encantar e nos proporcionar estados de felicidade. Quem já viajou infeliz, sabe do que eu estou falando. Eles, sozinhos, não funcionam, precisam da nossa ajuda.

Contemplamos a paisagem extraordinária e olhamos para a nossa vida ordinária e negociamos um equilíbrio. O que é a nossa própria solidão diante da grandiosidade da Acrópole em Atenas? O que é um coração triste dentro de um corpo que faz o mesmo trajeto que Aristóteles fazia para ensinar os seus alunos? Como não se sentir encantado diante de uma oliveira que foi contemplada por Platão? Como não esquecer o nosso mal-estar diante do abismo de vinhas da região do Douro vinhateiro, no Norte de Portugal? Como não olhar com distância para os nossos projetos falhados diante da vastidão enternecedora da Chapada Diamantina, no nordeste brasileiro?

Admiração e intimidade

À parte as maravilhas do mundo, a admiração também pode fazer parte da nossa intimidade. A música e a poesia podem ser fontes de encantamento estético. O amor que sentimos por alguém pode despertar a mesma vivência e tornar a vida mais digna de ser vivida. Outra fonte de encantamento são os filhos. Há uma espécie de endeusamento da criança e muitos pais só apreciam os filhos na inocência da infância. Chega-se a adolescência e muitos pais encerram o período dourado.

É um erro. Devidamente alimentada, a admiração pelos filhos pode seguir nos encantando pela vida a fora. Eu reconheço que vivi um estado de absoluto encantamento com a fase inocente do meu filho. Todas as viagens, ele insistia em levar o seu dragão de estimação. Verde e comprido — meio dragão e meio cobra, ao estilo chinês — era um incômodo logístico. Eu pedia para ele reconsiderar o companheiro de viagem, inadequado para o avião. Porém, ele sempre arrumava um argumento imbatível e seguia viagem com o seu dragão. Uma vez disse: “Sabes, mamã, ‘ele’ precisa ir. É que o meu dragão conhece poucas cidades”. Como não se encantar? Seu mundo lúdico funcionava como uma espécie de blindagem, uma couraça dourada que me protegia de tudo que existia de menos bom a minha volta.

Ainda a admiração

se encantar com a vida

Den Belitsky (IStock)

Hoje, tempos adolescentes, ele segue me encantando. É um exímio violinista. Encanta-me esse início da construção do seu gosto musical, os músicos que ele ama, sua fase fanática pelas Czardas de Monti. Maravilha-me o seu gosto por teorias econômicas. E mesmo traços da sua personalidade que considero que precisam ser corrigidos, tem o mesmo efeito admirável porque vejo nele autenticidade, o seu registro como um indivíduo único. Admiro as suas mudanças e também tudo aquilo que permanece. Desde bebê, ele é genuinamente bom. Como todo homem deveria ser.

A admiração não é apenas para grandes feitos ou ocasiões especiais; para momentos extraordinários ou para suavizar um mundo tristemente insustentável. É uma emoção para todas as épocas e cenários. Precisamos dela todos os dias. Ela deve fazer parte do nosso olhar sobre o mundo. A admiração não muda o mundo, mas muda a perspectiva e a forma de olharmos para ele. A admiração aumenta a nossa tolerância à incerteza e nos ajuda a acolher bem o que nos acontece, seja o que for.

Encante-se pela vida que surge diante dos seus olhos. Encante-se com o que você está fazendo neste exato instante — como a leitura deste artigo. Encante-se com a vida que você tem. Encante-se com o dia de hoje.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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